Escrever a primeira cena sexual em um livro sem conteúdo erótico é um pesadelo para alguns autores: O que deve ser colado que não ultrapasse limites? O que é interessante para o leitor? Qual a personalidade da narrativa? Acredite, cada detalhe importa. Embora não seja um monstro de sete cabeças, a temida cena de sexo é mais simples do que parece, tão normal quanto qualquer outra cena.
Atualmente, livros eróticos são bem criticados se comparados a antigas obras do gênero, pois mesmo que apresente uma protagonista feminina (como também era feito anteriormente) prosseguir com um ponto de vista submisso é bem antiquado hoje em dia. A obra de Erika Leonard James, Cinquenta Tons de Cinza está aí como prova disso, a mulher não é necessariamente a submissa de uma relação. Entretanto, quando cenas de sexo acontecem em situações de livros não eróticos a abordagem é sempre mais implícita.
Sempre tentamos deixar claro que não existem fórmulas para escrever um texto, portanto esse tipo de cena não precisa seguir tópicos fechados.
Escreva algo que te deixe satisfeito, porém sair da zona de conforto é sempre um passo importante de crescimento criativo. Separamos algumas dicas para você, autor e autora, perder o medo e escrever uma cena incrível!
Considere seu público alvo e o gênero do livro
É de se esperar que uma cena de um livro de Romance Adulto possa cenas mais cruas, sem devaneios e florais românticos. Um bom exemplo seriam as cenas sexuais retratadas tão bem por Milan Kundera em A Insustentável leveza do Ser, diferente das cenas mais idealizadas do chamado Young Adult, onde é mais comum que o lado romântico da cena aflore, por exemplo, nos livros de Cassandra Clare e Sarah J. Maas. Esse último caso leva muito o estilo das autoras, as duas possuem o mesmo público alvo, porém J. Maas utiliza de meios mais descritivos que Clare.
Escrever para um público quase que exclusivamente feminino é um campo minado, ainda há quem acredite que livros com esse tipo de cena trate de homens “garanhões” que fazem sexo e mulheres que apenas estão lá, para completar o sonho da “adolescente leitora”. Sobre isso, Cassandra Clare (Os Instrumentos Mortais) diz sobre sua literatura:
Olha, nós vivemos em uma cultura tóxica que mercantiliza sexo, que trata de homens que fazem sexo como se fossem garanhões e mulheres que fazem sexo como se fossem putas. Isso é algo que gira em torno de meninas enquanto elas crescem como veneno no ar. Nós todos respiramos isso. A minha esperança é que escrever sobre meninas que fazem sexo, têm desejos, são saudáveis e normais, não são destruídas pelo sexo que eles fazem, e não são julgadas por outras pessoas pode ajudar algumas meninas a não odiarem a si mesmas, como a sociedade nos ensina que devemos. Porque se nós odiamos a nós mesmos, acabamos odiando e julgando uns aos outros. E não há nada mais triste. *
Portanto, sempre tenha em mente que essa cena deve ser sobre duas pessoas, não sobre a erotização de uma figura que venda mais.
Por sua vez, os livros adultos tocam em outros pontos. Até onde romantizar e idealizar a cena?
Isso, claro, depende completamente do tom do seu livro.
Tente não cair na armadilha da “cena perfeita”, o cunho interno da obra até a cena em questão e o caráter desenvolvido pelo autor para seus personagens são a primeira fonte que o escritor deve utilizar para começar a estruturar a cena. Claro, se o livro usa de um tom pessimista desde o início, idealizar com floreios otimistas uma ação com sexo é extremamente perigoso. Um episódio com sexo apenas deve complementar o todo do livro, eventos isolados da obra não são incomuns, eventualmente podem ser interessantes, entretanto, são os mais complicados em questão de qualidade.
Tive a ideia, mas agora estou com medo de por no papel e ficar horrível
Relaxe, essas cenas necessitam mesmo de bastante revisão, prática e um esforcinho.
Não se preocupe em ter que editar o texto várias vezes, a necessidade de escrever uma cena perfeita desde o início é uma inimiga! Sente e escreva, coloque pra fora, não guarde a ideia por tanto tempo sem nunca utilizá-la, um dia ela simplesmente desbotará e uma cena com grande potencial foi simplesmente perdida.
A cena que quero escrever não é tão relevante, quero apenas citar o que aconteceu e não erotizar nada. Como prossigo?
Se for um rápido episódio, é legal que o corte entre as cenas seja interessante, o último parágrafo deve chamar atenção, deixar a cena cativante, embora toda a descrição tenha sido cortada, todo o acontecimento terá mais força.
Dicas a partir da escrita de autores famosos:
A abordagem implícita de Becky Albertalli (Simon vs. a agenda homo sapiens)
O episódio sexual não fica descrito em momento algum, o texto da autora deixa pistas de que algo aconteceu. A cena e sua construção são implicadas pela reação do personagem protagonista, como ele encara a situação, seus sentimentos. Isso é possível graças ao narrador, a obra se passa dentro da cabeça da personagem.
O sexo censurado de Cassandra Clare (Os Instrumentos Mortais)
Ao contrario de Becky Albertalli, Casssandra Clare utiliza da descrição em suas cenas, utilizando da “atração” entre os personagens e também a ação, porém, quando se trata do ato sexual em si, a autora é instruída por seus editores a censurar as cenas, cortar o momento em que o ato propriamente dito acontece.
O desvio de foco de Meggie Stiefvater (Os garotos corvos)
Na obra da autora, em semelhança a escrita de Becky Albertalli, o ato sexual fica implícito, entretanto, de forma ainda mais severa. A autora utiliza do ponto de vista dos dois personagens envolvidos, porém ambos não descrevem o ato, utilizando da descrição de seus sentimentos, comparando a sensações, como por exemplo uma tempestade, o acelerar o carro em uma pista perigosa.
A sinestesia da obra de Neil Gaiman (Deuses americanos)
Sinestesia é um recurso estilístico de mistura de sensações diferentes em um mesmo momento. Neil Gaiman é um grande utilizador dessa mistura de sentidos para descrever as cenas de sexo em seus livros. O autor faz uso de um jogo estratégico de palavras, nunca deixando claro se o que está acontecendo é uma ilusão do personagem-protagonista ou realidade. No momento em que acontece uma ação sexual, o autor deixa bem explícito o que os personagens farão, mas não o ato em si. Gaiman usa o conceito de flashbacks e sensações que procuram trazer o leitor mais próximo do acontecimento, porém sem descrever o ato em si.
Portanto, o autor ou autora pode usar um tom implícito mais descritivo como no caso da Becky, desviar o foco do ato para algo mais sensorial e comparativo como a Stiefvater, “censurar” o ato como faz a Cassandra Clare ou até explicitar a ação sem descrever o ato, como faz Neil Gaiman.
O importante, de qualquer forma, é que a cena de sexo esteja em consonância com o restante do livro, e que você, autor e autora, não desista de uma cena só porque ela parece difícil. O desafio da escrita pode ser um impulso para o desenvolvimento da voz de um escritor e escritora, então escreva!
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