Já escrevemos algumas vezes sobre o trabalho delicado que é construir um bom personagem ,,(7 dicas de como desenvolver seu personagem, Como não escrever personagens com deficiência). E hoje, nesse espírito, vamos falar sobre um tipo de personagem bastante polêmico: a Mary Sue.
Talvez você já tenha ouvido falar nesse conceito e, quem sabe, até já tenha acusado algum personagem de encarnar esse clichê. Porém, a proposta aqui é fugir dos “achismos” e aprofundar essa discussão.
Mas o que é uma Mary Sue?
“Gee, golly, gosh, gloriosky,” pensou Mary Sue ao entrar na ponte de comando da Enterprise. “Aqui estou, a tenente mais nova da frota – só com quinze anos e meio.” O Capitão Kirk veio até ela. “Ó, tenente, eu te amo ardentemente. Você passaria uma noite comigo?” “Capitão! Eu não sou esse tipo de garota!” “Você está certa, e eu te respeito por isso. Aqui, fique no comando da nave por um minuto enquanto eu vou buscar um café para nós”. O sr. Spock entrou na ponte de comando. “O que você está fazendo na cadeira de comando, tenente?” “O capitão me disse para fazê-lo.” “Perfeitamente lógico. Eu admiro a sua mente.”
Disponível em: ,,http://wiccananime.com/amslt/amslttrekkiestale
O trecho acima é o primeiro parágrafo da fanfic* “A Trekkie’s Tale”, escrita em 1973 por Paula Smith, cuja personagem, tenente Mary Sue, deu origem ao fatídico e polêmico conceito atual. A autora era muito ativa na comunidade de fãs de Star Trek e, não só lia tudo o que podia (a série televisiva tinha saído do ar e as fanfics se tornaram uma maneira de manter aquele universo vivo), como mais tarde passou a fazer comentários e resenhas críticas dos textos. Em suas palavras:
*Narrativa ficcional escrita e divulgada por fãs de um determinado universo, personagem ou personalidade.
“Theodore Sturgeon disse, 90% de tudo é lixo. O impressionante era, o lixo tinha um padrão.(…) dava para ver que todo Trek zine da época tinha uma história principal sobre essa garota adolescente (…). Todas as pessoas no universo se curvavam na frente dela.(…)” – Paula Smith
Entrevista disponível em: ,,https://journal.transformativeworks.org/index.php/twc/article/view/243/205
Então, Paula Smith escreveu essa história. Uma sátira desse modelo narrativo que parecia ter como único propósito realizar uma fantasia de quem o escreveu, e no qual a protagonista era uma projeção do próprio autor.
E foi assim que Mary Sue nasceu. O termo se popularizou e passou a designar personagens similares, em alguma medida, à caricatura de “A Trekkie’s Tale”.
O ponto central desse “herói” é que ele age como uma espécie de buraco negro na história, deformando a caracterização de todos os outros personagens e do mundo ao seu redor. Ou seja, todos a amam, mas sem causa aparente, esforço ou conflito; ela é naturalmente muito boa em todas as coisas (mais até do que seria plausível), mas ninguém a inveja. No fim das contas ela tende a ser uma ,,personagem torta,, .
Características “clássicas”
Agora começamos a entrar no aspecto polêmico do tema. Com a popularização do termo e sua propagação para fora do contexto dos zines de Star Trek dos anos 70, passou-se a associar uma série de características a esse clichê, nem todos eles diretamente relacionados com o conceito original. Por exemplo:
Ela é simplesmente mais: mais charmosa, mais inteligente, mais compreensiva… De alguma forma ela é perfeita demais – o que pode levar a um ,worldbuilding inconsistente, pela falta de justificativa de suas habilidades.
Falhas cativantes. Não entenda mal, ela tem falhas… mas só aquelas que a fazem mais atraentes… e que não tem impacto no enredo.
Tem características únicas e marcantes: nome, cor de olho ou cabelo – essencialmente qualquer coisa que a faça especial (menos no que diz respeito a sua personalidade) .
A tragédia a persegue, mas ela sempre vence (a não ser que perder a faça ainda mais especial ou poderosa).
Não tem um arco de crescimento pessoal. Ela já é “perfeita”, logo, ela não cresce na história.
O problema é, nenhuma dessas características define por si só uma Mary Sue. Uma personagem pode muito bem ter um desses traços e não se encaixar no conceito!
Esses atributos são estereotípicos, mas não definem a essência da ideia em si. Ao contrário, são, no geral, uma consequência da dinâmica que Mary Sues criam na narrativa – e por isso, podemos encontrar uma grande variedade desses personagens e em contextos muito diferentes.
“A mais verdadeira marca de uma Mary Sue não é como ela é descrita ou o que ela faz, mas o efeito que o mero fato de sua existência tem sobre os outros personagens na história (…)”
Disponível em: . como desse tipo, por que elas seriam “boas demais” . Nesse sentido,
O problema:
Acusar um personagem de ser uma Mary Sue, hoje, é uma grande crítica; significa chamar uma personagem de monótona, incoerente e bidimensional. Mas a realidade é que nós amamos muitos livros e filmes com protagonistas desse tipo.
Bella Swan, a heroína da série de livros (e filmes!) de fantasia ‘’Crepúsculo’, escrita por Stephenie Meyer, é um exemplo disso. A adolescente, ao se mudar para a casa do pai, se torna o centro das atenções, todos se apaixonam por ela ou são atraídos à ela de alguma forma – e é isso que motiva grande parte do enredo.
Mesmo sendo uma Mary Sue (ou outros chamariam, uma Anti-sue**), a saga fez muito sucesso e é tem uma grande quantidade de fãs.
** Variação do termo que designa personagens descritas como “medíocres” (por exemplo sendo descritas como feias), mas que ainda exercem o mesmo encantamento sobre os outros personagens.
Outro exemplo é o Kirito***, “herói” do anime Sword Art Online. O protagonista é quase uma “folha em branco”, por meio da qual nós somos conduzidos pelo mundo da animação.
*** Há termos masculinos como Gary Stu e Marty Sue, mas não os usaremos aqui, como argumentaremos a seguir.
Uma história com uma Mary Sue é necessariamente ruim? Não! Tanto Sword Art Online e a Saga Crepúsculo fizeram muito sucesso com protagonistas desse tipo. A questão é que normalmente as narrativas fazem sucesso apesar disso – o enredo é interessante o suficiente para manter nosso interesse, e o protagonista pode acabar tendo um efeito de inserção do leitor naquele mundo.
O grande problema das Mary Sues é que elas trazem consigo falhas narrativas – se não com incoerências no mundo em que elas vivem, com incoerências no que se esperaria do comportamento dos coadjuvantes. É claro, nós gostamos de algumas dessas personagens, mas não podemos chamar elas de bem construídas.
No filme Megamente, Metroman, o “antagonista” do vilão (no caso, o protagonista), é desenvolvido seguindo esse clichê durante o começo do filme. Porém, mais tarde descobrimos que (até) ele estava cansado desse papel monótono e previsível (paramos aqui para evitar spoilers!).
A principal polêmica em torno desse conceito e a pergunta que não quer calar é: A Mary Sue é misógina?
Para responder a essa pergunta temos que levar duas coisas em consideração: o termo em si e o seu uso.
Primeiramente, o termo foi cunhado por uma mulher a partir de estereótipos observados em fanfics, gênero predominantemente escrito por mulheres. Consequentemente, as personagens de auto-inserção observadas tendiam a ser femininas. Isso não quer dizer que ele se aplica somente à mulheres, tornando nomes de diferenciação masculina, como Marty Sue e suas variantes, desnecessários.
Contudo, Paula Smith confessou em uma ,,entrevista ser culpada de, sem querer, ter usado Mary Sue para além do que seria razoável, como uma espécie de crítica ao caráter feminino como um todo.
Atualmente, é muito comum ver uma aplicação errônea desse conceito, caracterizando personagens overpower como desse tipo, por que elas seriam “boas demais”. Sim, elas. Grande parte da crítica a Mary Sues se volta para mulheres. Nesse sentido, personagens femininas fortes, como a Capitã Marvel ou a Katniss Everdeen (Jogos Vorazes), acabam sendo injustamente taxadas como Mary Sue. E, por isso, elas são desqualificadas – e como podemos imaginar, isso gera uma série de consequências práticas.
Vemos o reflexo de uma sociedade machista; o termo Mary Sue não se restringe a personagens femininas, mas elas são mais suscetíveis à crítica.
“Claro. Qualquer um desses personagens de autorrealização, cuja presença no universo distorce a realidade [são Mary Sue]. Mas nós não o notamos quando isso envolve homens.”
Se o tema te interessa, confira: Escrita Criativa: a criação de estereótipos femininos.
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