“O último dia do ano/ Não é o último dia do tempo”. Publicado em 1945, no célebre livro “A Rosa do Povo”, este poema de Drummond ganha uma feição especial à luz deste 2020.
Invocando uma série de experiências comuns, este poema celebra a continuidade da vida, apesar de um “fim” iminente. Neste ano de pandemia, em que a vida ou foi encerrada em quatro paredes – para quem pôde ficar em casa – ou se tornou uma constante ameaça – para quem teve de continuar saindo às ruas -, o texto se torna mais que uma recordação: se torna uma profecia de que a vida irá voltar, apesar deste intervalo. Sim, “outros dias virão”, “beijarás bocas, rasgarás papéis, / farás viagens e tantas celebrações/ de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral, / que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor, / os irreparáveis uivos / de lobo, na solidão”. Amém, Drummond.
Disponibilizamos, a seguir, o poema na íntegra. Boas festas, e um feliz 2021 aos nossos leitores!
PASSAGEM DO ANO
O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
de lobo, na solidão.
O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus…
Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.
O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles… e nenhum resolve.
Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.
REFERÊNCIA:
ANDRADE, Carlos Drummond de. “Passagem do Ano” In: “A Rosa do Povo”. 17º edição. Rio de Janeiro: Record, 1996.