Nehemia e Nabu

Aviso: este post contém spoilers sobre as séries Trono de Vidro e Winx Club. Quem morre nas histórias? Não é segredo para nenhum leitor...

Aviso: este post contém spoilers sobre as séries Trono de Vidro e Winx Club.

Quem morre nas histórias?

Não é segredo para nenhum leitor ou autor que histórias são capazes de brincar com nossas emoções. Seja em formato de mangá, livro ou filme, narrativas bem construídas nos fazem sentir profundamente pelos personagens, com emoções que vão de alegria até a tristeza mais doída.

Assim sendo, esse post discorre não sobre o sentimento de perda ou dor que uma história pode causar, mas sobre um dos artifícios utilizados para evocar tais emoções: a morte de um personagem. Mais do que isso, porém, a intenção é analisar e indagar quem morre, quando e como. Há padrões a serem observados aqui e percebê-los é importante para sermos capazes de desafiá-los, se necessário.

Os personagens que guiarão o post são Nehemia Ytger, da série de livros Trono de Vidro, e Nabu, da série animada Winx Club. Para começar, então, uma breve sinopse das obras em que os personagens tomam parte.

Trono de Vidro (2013)

Autora: Sarah J. Maas

A magia há muito abandonou Adarlan. Um perverso rei governa, punindo impiedosamente as minorias rebeldes. Aos 18 anos, uma prisioneira está cumprindo sua sentença. Ela é uma assassina, e a melhor de Adarlan. Aprisionada e fraca, ela está quase perdendo as esperanças, a sentença de morte é iminente, mas a jovem recebe uma proposta inesperada: representar o príncipe em uma competição, lutando contra os mais habilidosos assassinos e larápios do reino. Mas ela não diz sim apenas para matar, seu foco é obter sua liberdade de volta. Se derrotar os 23 assassinos, ladrões e soldados, será a campeã do rei e estará livre depois de servi-lo por alguns anos. Endovier é uma sentença de morte, e cada duelo em Adarlan será para viver ou morrer. Mas se é o preço para ser livre, ela está disposta a tudo. Seu nome é Celaena Sardothien. O príncipe herdeiro vai provocá-la, o capitão da guarda fará tudo para protegê-la. E uma princesa de terras distantes se tornará algo que Celaena jamais pensou ter novamente: uma amiga. Mas algo maligno habita o castelo – e está ali para matar. Quando os demais competidores começam a morrer, um a um e de maneira terrível, Celaena se vê mais uma vez envolvida em uma batalha pela sobrevivência e inicia uma jornada desesperada para desvendar a origem daquele mal antes que ele destrua o mundo dela. E sua única chance de ser livre.

Winx Club (2004)

Criador: Iginio Straffi

A série segue as aventuras de um grupo de garotas conhecidas como Winx, estudantes (e mais tarde graduadas) do Colégio Alfea para Fadas, que se transformam em fadas para lutar contra vilões. A equipe é composta por Bloom, a líder ruiva com poderes baseados em chamas; Stella, a fada do Sol; Flora, a fada da natureza; Tecna, a fada da tecnologia; Musa, a fada da música; e Aisha, a fada das ondas. Roxy, a fada dos animais, ocasionalmente se junta às Winx e todas as três produtoras do show se referem a ela como o sétimo membro do Winx Club. Os principais personagens masculinos são chamados de Especialistas, um grupo de alunos e mais tarde graduados da escola Fonte Rubra que estão romanticamente envolvidos com as fadas Winx. Eles incluem o noivo de Bloom, Sky; O noivo de Stella, Brandon; O namorado de Flora, Helia; O namorado de Tecna, Timmy; e o namorado de Musa, Riven. Ao contrário de suas contrapartes femininas, os especialistas não têm poderes mágicos e, em vez disso, treinam como lutar usando armas a laser. Os adversários mais comuns das Winx e dos Especialistas são um trio de bruxas chamado Trix: Icy, Darcy e Stormy, todas ex-alunas da escola Torre Nebulosa.

Nehemia

Nehemia era, inegavelmente, uma personagem importante na trama de O Trono de Vidro. Como uma das primeiras amigas que Cealena fez no palácio, ela tinha um papel emocional importante para a protagonista da história. Além disso, porém, Nehemia era uma personagem com força própria: como princesa de Eyllwe, se mostrava muito responsável em sua posição e mais do que disposta a fazer o necessário pelo que acreditava ser um bem maior. Também era uma das poucas pessoas versadas nas marcas de Wyrd, símbolos mágicos que tinham muito peso na história e, logo, a fazia detentora de um conhecimento muito precioso.

Nehemia morreu no segundo livro da série, assassinada. Sua morte, bem amarrada com o enredo, claramente tinha o propósito de impactar a protagonista da história e suas ações futuras.

Preciso apontar que a morte de Nehemia é realmente bem trabalhada nos livros que se seguem. Celaena, a pessoa que era mais ligada a ela, sofre um luto pungente, e a perda é tratada com seriedade e peso. Depois, descobrimos algumas coisas sobre as motivações de Nehemia, o que, apesar de torná-la mais controversa, também mostram quão forte seu caráter era, e lhe incutem de uma nobreza extra.

Qual o problema, então?

Dos personagens principais e secundários, Nehemia é a única morte que presenciamos nos cinco dos seis livros da série. Como apontei antes, não nego que seu assassinato tenha sentido na narrativa, mas não muda o fato de Nehemia ser uma das poucas personagens caracterizada como de pele marrom escura, preta. E, coincidentemente, é uma das únicas personagens que morre.

Não creio que essa tenha sido uma escolha consciente, somente conveniente. Como apontei antes, Nehemia era alguém cheia de conhecimento e força, e que certamente teria o que acrescentar na história. A autora decidiu não fazê-lo e estruturou bem a história com essa escolha em mente, mas nada nos impede de imaginar o que poderia ter sido.

É interessante perceber, também, que utilizar a morte de uma personagem como catalisadora da mudança de outra personagem é um artifício comum em todos os tipos de mídia, e não é, por si só, um problema. Ao contrário do que vemos em outras obras, Nehemia foi uma personagem bem desenvolvida que, pelo menos durante a leitura dos livros, não parece ter sido criada só com o propósito de morrer, tendo uma profundidade real. Mas, claro, sua personalidade também é conveniente em alguns aspectos, como sua disposição a morrer por um bem maior – ou, de maneira mais metalinguística, pelo bem do desenvolvimento de Celaena.

Nabu

Nabu foi apresentado na terceira temporada de Winx, como o noivo prometido de Aisha desde que eram crianças, em um casamento arranjado. Durante essa temporada ele tenta esconder sua identidade e vai conhecendo Aisha no processo, além de ajudar as Winx e os Especialistas. No fim, ele e Aisha acabam se apaixonando, apesar de reprovarem a ideia do casamento arranjado a princípio.

Winx foca nas garotas que dão nome à animação, mas, mesmo assim, conseguimos conhecer algumas características interessantes de Nabu. Como Aisha, ele nasceu em uma família rica e cresceu muito isolado, tendo aprendido técnicas de batalha e magia nesse período.

Em um dos últimos episódios da quarta temporada da série, Nabu morreu depois de esgotar suas energias para salvar seus companheiros. Isso teve um impacto muito forte em Aisha que, nos episódios seguintes, amargurada e em luto, se junta a um grupo de fadas vingativas e deve ser persuadida a voltar para o lado de suas amigas.

Qual o problema, então?

Nabu é uma das poucas mortes da série. Dos protagonistas, certamente é o único. A maioria dos vilões são exilados em outras dimensões, coisa que faz sentido com a faixa etária a que o desenho é direcionado. Mesmo a morte de Nabu é “duvidosa”, uma vez que implica-se que ele está em um estado de coma e poderá acordar em algum momento mas, várias temporadas depois, não parece que isso acontecerá.

Nabu é, também, um dos poucos personagens masculinos de pele escura da animação. Novamente, não creio que tenha sido algo intencional, mas conveniente. Além disso, ele era um dos interesses amorosos mais recentemente apresentados. O objetivo de sua morte era, claramente, criar um momento dramático e difícil para todos, mas, ao escolherem Nabu, parece que escolheu-se a opção menos comprometedora.

Faz sentido não querer chocar demais um público infantil, mas, se vamos pensar em carga dramática, não teria mais peso matar um dos personagens mais antigos da série, como Sky ou Brendon? Personagens como eles são velhos conhecidos dos espectadores, o público teve muito tempo para se ligar a eles e à relação que tinham com suas namoradas e amigos. Doeria muito mais, com certeza, mas também obrigaria a ter que retomar isso constantemente na temporada seguinte e lidar com o espaço vazio que seria gerado. Isso, de certa forma, foi feito com a morte de Nabu, mas, novamente, não teve metade do peso que poderia ter tido.

As similaridades e o que elas evidenciam

Voltando ao que disse no começo, matar uma personagem, com os mesmos propósitos vistos nos exemplos, não é, por si só, algo ruim. O problema é que, analisando a obra no geral, podemos perceber algumas similaridades. Retomemos as perguntas que listei no princípio do post para tornar isso mais evidente: quem morre, quando e como?

  • Quem morre?

Em ambas as obras analisadas, são justamente as personagens de pele escura que morrem, em histórias em que a maioria dos personagens são brancos. Isso quer dizer que personagens não-brancos não podem morrer ou sofrer? De maneira nenhuma. A questão é que, quando a diversidade é pouca e relegada a um ou dois personagens, suas mortes são mais evidentes. Em um grupo de personagens mais diverso, se de cinco personagens não-brancos um morre, certamente não parece uma escolha conveniente ou suspeita.

  • Quando morrem?

Pouco depois de serem apresentados. Nehemia é assassinada no segundo livro da série e, ao contrário de outros personagens, não foi explorada em um livro spin-off, por exemplo. Nabu morreu em sua segunda temporada aparecendo na animação. Ambos os personagens foram bem construídos dentro do que os formatos de suas narrativas permitiam, mas certamente não tiveram tanto desenvolvimento que o resto de seus companheiros de enredo.

Volto, também, à questão anterior de suas mortes serem a opção menos comprometedora. Ao invés de arriscar matar personagens com maior grau de importância e ter que lidar com essa falta na história, escolhe-se uma personagem cuja falta não terá consequências tão devastadoras para a narrativa.

  • Como morrem?

Na morte tanto de Nehemia quanto de Nabu é possível perceber um caráter de sacrifício. Nehemia foi para o palácio consciente de que não voltaria à sua terra natal, e decidiu que morreria para que Celaena pudesse ter vontade de ocupar seu lugar de direito como rainha. Nabu morre tentando salvar seus amigos. Ambos também servem para avançar o desenvolvimento de outros personagens. Isso, novamente, não é ruim, afinal morte sem propósito também não é uma boa saída, mas, pareado com as características que elenquei antes, cria-se um arquétipo de personagem.

Os exemplos de Nehemia e Nabu servem para nos atentarmos para nossa própria escrita ou para a construção das obras que consumimos. Quantos personagens LGBTQ+, pretos, asiáticos, indígenas, com deficiência existem na história? São eles quem morrem? Outros personagens, que não façam parte de minorias, também morrem? Suas mortes são tratadas da mesma forma e/ou tem o mesmo propósito? Mais do que criticar, a intenção deste post é incentivar o olhar atento para essas questões e, se possível, ir resolvendo-as. No fim, o ponto chave é ter mais diversidade, evitando cair nos padrões aqui apresentados.

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Mariama Soares Sene Pereira
Mariama Soares Sene Pereira
Artigos: 26

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