Por que ler literatura?

Afinal, principalmente nos seus anos de escola, quem nunca se perguntou “mas pra quê isso serve na minha vida?” enquanto lia alguma obra?

No clima do post do mês passado Reflexões sobre leitura, com o auxílio de Michèle Petit, no qual elaboramos uma reflexão muito interessante sobre a leitura, hoje vamos discutir um pouco sobre um assunto ainda mais interessante: a leitura literária.

Afinal, principalmente nos seus anos de escola, quem nunca se perguntou “mas pra quê isso serve na minha vida?” enquanto lia alguma obra a pedido do professor? Eu, como a leitora ávida que sempre fui, com certeza já me fiz essa pergunta… e hoje, depois de muita reflexão, traremos algumas ideias sobre o tema.

Você já ouviu falar em Fahrenheit 451? Essa ficção científica distópica é um livro muito popular e recebeu, recentemente, mais uma adaptação cinematográfica (deixamos aqui a recomendação, caso você se interessar). A ponto de partida para a sua trama é a censura dos livros, em um mundo onde os bombeiros passaram a ter como responsabilidade incinerar as obras.

“Não coloque as pessoas em terreno movediço, como filosofia ou sociologia, com que comparar suas experiências. Aí reside a melancolia. Todo homem capaz de desmontar um telão de TV e montá-lo novamente, e a maioria consegue, está mais feliz do que qualquer homem que tenta usar a régua de cálculo, medir e comparar o universo, que não será medido e comparado sem que o homem se sinta bestial e solitário. (…) Nós resistiremos à pequena maré daqueles que querem deixar todo o mundo infeliz com teorias e pensamentos contraditórios. (…) Pode acreditar, os livros não dizem nada. Nada que se possa ensinar ou em que se possa acreditar. (…) Você pergunta o porquê de muitas coisas e, se insistir, acaba se tornando realmente muito infeliz.”

Fahrenheit 451, Ray Bradbury.

Esse trecho exemplifica parte do pensamento do sistema de repressão em que vivem os personagens na obra de Ray Bradbury: o ódio ao pensamento crítico e às ideias e experiências pessoais; incentiva-se, sim, a doutrinação e a alienação dos indivíduos. O grande símbolo disso é a queima de livros; 451 fahrenheits é a temperatura de combustão do papel.

Queimar livros é algo de um valor simbólico gigantesco, e é algo que se repete em diversas situações na história, com a censura e com governos autoritários. Um ótimo exemplo disso é a Alemanha nazista.

Porém, o fato é que, independentemente do fogo, sempre que um Estado totalitário tenta se impor com mais força, ocorre uma grande onda de censuras – como, durante a ditadura militar brasileira, com a proibição de romances de autores como Jorge Amado. A grande pergunta é por que? Como uma obra ficcional passa a ser entendida como algo subversivo e com tamanha repercussão?

Podemos considerar, portanto, que a literatura tem, em alguma medida, um papel bastante importante na sociedade, ocupando um espaço associado ao pensamento crítico, e, portanto, um espaço bastante político. Mas cuidado! Não podemos reduzir a literatura à um manifesto (esse sim, um gênero de escrita que pretende ser extremamente político).

Existem ainda muitos outros exemplos que manifestam a importância da literatura para além desse aspecto. Segundo Antonio Candido, gande teórico e crítico-literário brasileiro, a literatura é uma necessidade universal – isto é, a fabulação é algo intrínseco a todos nós. Criar histórias faz parte da natureza e existência humana.

É algo que fazemos, mesmo que de forma inconsciente, e que enriquece a nossa visão sobre o mundo. Afinal, se a literatura é uma necessidade humana e existe em todas as culturas, ela é um direito.

“a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudicais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas.”

– Antonio Candido, do ensaio “O direito à literatura”.

(entrevista disponível em:
https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/antonio-candido/antonio/?content_link=1)

É claro, na concepção de Candido aqui não diz respeito somente aos textos escritos e que têm como suporte o livro. Não, ele diz respeito à capacidade de fabulação do ser humano, considerando como literatura (“em graus de sofisticação” diferentes) toda a narrativa que se cria, contendo, por exemplo, o folclore.

Mas, o que pretendemos discutir aqui não é toda e qualquer narrativa, afinal, elas poderiam abranger até as conversas que temos com nossos amigos, contando “causos” e lembranças. Então, o que é literatura? Bem, essa é uma questão bastante complexa e que não vamos elaborar nesse texto. Mas, para fins de análise, podemos assumir aqui um sentido específico: textos escritos e ficcionais que se organizem no formato de livro ou e-book.

Enfim, como Candido nos faz observar, existe sim um valor nas narrativas que, inclusive, seria essencial para o enriquecimento de nossa experiência humana. E, por isso, argumento aqui que a literatura não é útil.

Como assim?”, você deve estar se perguntando. Sim, é isso mesmo. A literatura, apesar de – assim como diversas outras experiências culturais e artísticas – propiciar uma série de “benefícios”, não tem um sentido prático. Ou seja, ao se ler ou escrever uma obra literária não é gerado nenhum produto, no sentido mais capitalista da palavra.

Ela não é uma forma eficiente de adquirir conhecimento; livros técnicos o são. Elas não te oferecem exatamente aquilo que você espera; não, a literatura está o tempo todo a surpreender-nos… e isso não é um problema.

Sim, existem vários mitos em torno da leitura – principalmente do cânone -, como a ideia de que ler as grandes obras torna um indivíduo mais inteligente. Não estamos questionando aqui que um livro possibilite que o leitor aprenda, desenvolva ideias e outras habilidades de leitura e linguagem, mas sim afirmando que esta não é a finalidade da literatura e esta não é o meio mais eficiente para alcançar esses objetivos. Enquanto obra artística, livros podem veicular conteúdos e reflexões, mas sua intenção não é apresentá-los como um material didático ao leitor.

A literatura não tem um propósito.

Estamos acostumados a pensar dentro da lógica produtivista e do ritmo acelerado que o mundo atual nos impõe. Quando “tempo é dinheiro”, parece-nos que cada segundo de nossas vidas deve ser investido, ponderadamente, para uma finalidade específica. A literatura, porém, como algo tão intimamente ligado à experiência e subjetividade humanas, não serve à produtividade.

Segundo Silvia Federici, em seu livro o Calibã e a Bruxa, nos tempos anteriores ao desenvolvimento do capitalismo, a rotina de trabalho das pessoas se dobrava às suas necessidades e estava sujeita à sua qualidade de vida. Se, por exemplo, um eclipse fosse um mau-presságio e as pessoas entendessem, por “superstição”, que deveriam ficar em casa naquele dia, não iriam trabalhar.

Por outro lado, a magia se apoiava em uma concepção qualitativa do espaço e do tempo que impedia a normalização do processo de trabalho. Como podiam os novos empresários impor hábitos repetitivos a um proletariado ancorado na crença de que há dias de sorte e dias sem sorte, ou seja, dias nos quais se pode viajar e outros nos quais não se deve sair de casa, dias bons para se casar e outros nos quais qualquer iniciativa deve ser prudentemente evitada? Uma concepção do cosmos que atribuía poderes especiais ao indivíduo — o olhar magnético, o poder de tornar-se invisível, de abandonar o corpo, de submeter a vontade dos outros por meio de encantos mágicos — era igual-mente incompatível com a disciplina do trabalho capitalista. (…) Tomemos, por exemplo, a difundida crença na possibili-dade de encontrar tesouros escondidos com a ajuda de feitiços mágicos (Thomas, 1971, pp. 234-7). Esta crença era certamente um obstáculo à instauração de uma disciplina do trabalho rigorosa e cuja aceitação fora inerente.

Calibã e a bruxa, Silvi Federici, p. 259

Não estamos aqui, de forma alguma, demonizando o sistema socioeconômico em que vivemos atualmente, mas, simplesmente, apontando que – ao contrário do que o “espírito da época” dita – há mais razões para se fazer algo do que o valor que isso irá gerar; ainda mais quando falamos de algo de valor subjetivo e humanitário.

Mas por que, então?

Depois de tanto dizer qual não é o valor da literatura, ainda se mantém a pergunta: por que lê-la?

  1. Porque isso significa permitir-se experimentar e se relacionar com um universo e perspectivas diferentes das suas.

Nós, como humanos, temos nas narrativas a forma pela qual elaboramos e compreendemos o mundo a nossa volta; é atrevpes delas que inclusive compreendemos a nossa prória (história de) vida. Como disse Benveniste, é na e pela linguagem que se constituem os sujeitos. Ou seja, a literatura nos dá acesso àquilo que é essencial; nas palavras de Candido, ela humaniza.

  1. Porque através dela podemos sentir.

Como obra artística, tão carregada de sentidos, significados e experiências humanas, podemos olhar para dentro. Etravés da leitura literária nos permitimos sair de um mundo de transações utilitárias e da racionalização da vida, dando espaço à criação de laços mais profundos com a realidade e à reelaboração do olhar que temos sobre as coisas.

Sim, não há nada de útil em admirar uma borboleta voando, mas, ao mesmo tempo, pode ser uma experiência única e mágica. Somos nós que atribuímos signifcados às coisas, e a literatura nos permite expandí-los e reinventá-los, em um diálogo constante entre nós e os autores.

  1. Porque ela é algo muito valorizado na nossa cultura.

Não posso, nem vou, afirmar aqui uma superioridade da literatura frente a outras formas de produção artísticas e culturais. Pórém, é inegavel que ela tem uma posição mais consolidada e um maior status frente às outras.

Isso não quer dizer que você não deva ouvir músicas, histórias populares ou ir em festivais, não. Mas isso significa que precisamos reconhecer a posição dos livros e enxergar neles o valor simbólico que eles têm. Afinal, queima-los é um ato extremamente impactante, muito mais do que outras formas de censura (ainda horríveis, mas, com certeza, menos icônicas).

Conclusão:

Enfim, a literatura não tem um valor utilitário, mas artístico, cultural e subjetivo, o que faz com que ela seja capaz de despertar em nós um olhar diferente para o mundo. Ler literatura não “serve pra nada”, e esse é seu melhor valor dentro de uma sociedade produtivista. Se tudo o que fazemos serve para um propósito prático e racional, ainda seríamos humanos?

Ela não é intrinsecamente melhor do que qualquer outra forma de produção artística e expressão cultural, mas possui, sim, um espaço privilegiado dentro desse paradigma – é um objeto que temos na mais alta estima, e isso não é um problema. Além disso, por ser tão difundida (em razão desse valor) temos um grande número de autores de muitas culturas diferentes.

E, por isso, leia literatura para experienciar o mundo, para sentir e ser. Leia para ser humano e empático, para se divertir, rir, chorar e pensar. É por essa série de motivos que é essencial que haja literatura nas escolas, para que as crianças possam conhecer o mundo, não só saber fatos sobre ele; para que elas possam apreciar a beleza das coisas; para que elas possam sentir, em um mundo extremamente racionalizado.

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Essa iniciativa surge com o intuito de valorizar a educação, a ciência e a universidade. O post educacional ocorre mensalmente aqui no blog e com ele, a Odisseia tem como objetivo apresentar reflexões, críticas e sugestões para os estudantes, além de incentivar e auxiliar a entrada na universidade. Acreditamos na mudança por meio da educação. Portanto, essa é a nossa pequena contribuição para a valorização do nosso futuro!

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