Norma culta é um termo que tem sido usado com frequência, seja na escola, na universidade ou na grande mídia, e parece ter uma pluralidade de significados. A confusão só piora quando adicionamos os termos norma-padrão e normativismo no meio disso tudo.
No post de hoje, então, vamos esclarecer o que cada um quer dizer – além de debater um pouquinho sobre o por que de existir tanta confusão terminológica envolvida quando se trata desse assunto.
O QUE É “NORMA”, EM PRIMEIRO LUGAR?
De acordo com Carlos Alberto Faraco, em seu livro “Norma Culta Brasileira – desatando alguns nós”, pode-se conceituar norma como:
“[…] determinado conjunto de fenômenos linguísticos (fonológicos, morfológicos, sintáticos e lexicais) que são correntes, costumeiros, habituais numa dada comunidade de fala. Norma nesse sentido se identifica como normalidade, ou seja, com o que é corriqueiro, usual, habitual, recorrente (“normal”) numa certa comunidade de fala” (p. 37)
Assim, diferentes comunidades de fala, diferentes grupos sociais, possuem suas próprias normas, suas maneiras específicas de falar. Tradicionalmente, na sociolinguística, passou-se a pensar que existem normas distintas quando se trata de idade, gênero, etnia, nível de renda e escolaridade.
As normas, porém, não são puras ou estáticas. Todo falante transita por diversas comunidades de fala (a escola, o bairro, a igreja, são todas comunidades com normas linguísticas e socioculturais distintas). Assim, é tão natural quanto esperado que as normas se misturem e se modifiquem com frequência.
E A NORMA CULTA?
A norma culta é, seguindo a lógica do que foi dito anteriormente, a norma de um certo grupo social. Neste caso, é “o conjunto de fenômenos linguísticos que ocorrem habitualmente no uso dos falantes letrados em situações mais monitoradas de fala e escrita.” (FARACO, p. 73, 2008).
É importante ressaltar que, quando se trata de norma culta, isso engloba tanto a escrita quanto a fala. Há diferenças entre os dois meios, já que aceitamos certas construções na fala culta, mas as criticamos se forem feitas nas escrita culta.
A norma culta possui prestígio social, sendo encarada, frequentemente, como um ideal quando se trata do uso da língua. Essa hierarquização, contudo, nada tem a ver com a parte linguística da norma. O prestígio origina-se por valores políticos e sociais e por questões históricas.
“A ideia de uma variedade cultivada da língua resultou sempre do esforço das elites para criar símbolos que pudessem distingui-las das camadas populares – ou seja, como se diz de modo bastante depreciativo, as elites sempre se esforçaram para criar símbolos que pudessem distingui-las da “plebe rude”, do “vulgo”, do “populacho”.” (FARACO, p. 62, 2008)
A norma culta é a norma linguística praticada por grupos sociais vistos como mais diretamente relacionados com a escrita, e influenciados por ela.
Como a escrita é uma tecnologia que costumava ser um privilégio da elite e, no Brasil, só nas últimas décadas passou a ser algo difundido para toda a população – e olhe que ainda há muito o que se melhorar nesse sentido -, faz sentido que a norma culta tenha um lugar tão alto na “hierarquia das normas”.
O prestígio da norma culta é tão grande que leva o falante a confundir a norma com a própria língua, a imaginar que a norma mais monitorada é o português brasileiro, o que de forma alguma é o caso.
A NORMA-PADRÃO E O CONTEXTO LINGUÍSTICO BRASILEIRO
A norma-padrão não é uma variedade da língua, como é no caso da norma culta. É, na realidade, uma espécie de referência para um processo de uniformização linguística. A norma-padrão é extraída do uso real da língua, mas, tendo o papel de servir como base para uma homogeneização, tem um caráter um pouco mais artificial.
No Brasil, tal artificialidade é bem proeminente e bastante diferente do que aconteceu em outros países. Na Europa, em projetos políticos de criação de Estados-nação, a unificação linguística era providencial e por isso a norma-padrão era essencial.
Aqui, contudo, já havia um Estado-nação bem firmado quando se começou a pensar em uma norma-padrão, então a unificação linguística não serviria para tanto. O objetivo aqui era combater as variedades do português popular, ligadas a um Brasil “mestiço”, “multirracial”. Para uma elite conservadora que aspirava à branquitude e ao modelo europeu, os fenômenos linguísticos populares só poderiam ser sinônimo de inferioridade.
Nossa norma-padrão nem mesmo nasceu com base na norma culta da época, como seria esperado. A base foi um modelo da escrita do português de Portugal, praticado por escritores romancistas lusitanos.
Por ser tão diferente da língua em uso no Brasil, a norma-padrão codificada lá no século XIX nunca realmente foi absorvida pelos falantes brasileiros. O impulso homogeneizador, porém, instaurou-se na nossa sociedade. Afinal, quem nunca ouviu que “os brasileiros não sabem português”, “que estão destruindo a língua” e tantas outras afirmações depreciativas sobre a fala e a escrita da população?
A solução seria deixar para trás essa gana normativista, que vê erros em tudo e teme que o português brasileiro esteja sendo corrompido por seus próprios falantes. Nossos gramáticos e estudiosos já se movimentam para, ao invés de ficar batendo na tecla de regras antigas e arbitrárias, observar e descrever a língua em uso. Muitas gramáticas atuais, por exemplo, baseiam seus apontamentos nos usos da norma culta.
Existindo tantas normas distintas, chamar o que certa variedade linguística faz de “erro” não parece fazer sentido – não se trata de certo e errado, e sim de uma norma diferente. É importante ressaltar que a língua “acontece” antes das gramáticas, que estão ali para registrar o uso, não limitá-lo.
“O falante mais conservador pode perfeitamente aconselhar, sugerir, recomendar o uso mais clássico. Está no seu direito. Mas, se na norma culta/comum/standard já circulam outras formas, esse falante não tem o direito de condenar os que as usam. Antes cabe maravilhar-se com a beleza dinâmica e da riqueza da língua que muda continuamente sem jamais perder sua plenitude estrutural e seu potencial semiótico.” (FARACO, p. 101, 2008)
Portanto, quando se trata de língua, não existe estagnação. À medida que a língua – em suas diversas variedades com suas diferentes normas – muda, as gramáticas e outros instrumentos normativos devem passar a descrever tais mudanças.
Finalizo essa discussão com as palavras de José Saramago, resumindo bem todos esses preceitos e valores apontados até aqui:
“A língua não tem formas puras e formas impuras, é vária, diversa, percorre toda a sociedade, tanto horizontal como verticalmente. Não há contaminações, há intercâmbios, evolução, mutações. Não há nada mais mestiço que a língua.” (José Saramago, em entrevista com Luiz Costa Pereira Junior)
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