Existem muitas coisas que nos fazem gostar de ler obras de ficção. Talvez você leia porque gosta de adivinhar o que acontece no final ou porque ama conhecer novos mundos.
Em todo caso, quando lemos, queremos nos envolver em uma narrativa; queremos fugir um segundo da realidade hiperprodutiva das nossas vidas. Histórias são, antes de mais nada, entretenimento.
Como concluímos em Por que ler literatura?, a literatura nos faz experienciar o mundo, sentir e ser. Nós lemos para ser humanos e empáticos, para nos divertir, rir, chorar e pensar.
Mas como envolver os leitores?
Bem, há vários caminhos que podem ser percorridos, mas, com certeza, um deles (e, talvez, o mais importante de todos) seja o como contamos a história.
Como contar histórias?
Via de regra, um dos principais elementos de uma narrativa é a presença de personagens, os quais acompanhamos durante um enredo, em um dado espaço e tempo. Então, para contar uma história precisamos desenvolver os personagens e seus diversos aspectos. Ou seja:
- Suas ações,
- Ideias,
- Sentimentos e…
- sensações
As sensações são a dimensão material daquele ser em seu mundo. São a sua percepção e aquilo que o conecta com a realidade a sua volta. Sim, estamos falando sobre os 5 sentidos.
Assim, há várias maneiras de organizar uma história:
- ela pode ser contada como uma sequência de ações
“Sorriu. Vestiu roupa, envolveu-se numa manta e saiu. Blanca começou a andar em direção do rio.”
Trecho adaptado de A cada dos Espíritos, de Isabel Allende
- Ou ela pode também abranger as ideias de um personagem, e seus sentimentos, e suas sensações.
Uma narrativa, portanto, não se resume a o que acontece, mas a forma como os eventos se desenrolam e, para isso, é essencial que um escritor descreva os acontecimentos.
Sim, eu sei, nós já discutimos descrições antes nos textos “Não conte, mostre”: dicas para escrever um bom desenvolvimento e As descrições de uma história: olhando para os autores, mas hoje vamos tratar de um aspecto mais específico delas: o uso dos sentidos.
Ok, nós já sabemos quais são os 5 sentidos, não é? Olfato, paladar, audição, tato e visão.
Porém, muitas vezes não sabemos como explorá-los na escrita.
E, quando utilizamos esses recursos, temos uma certa tendência a focarmos na visão, descrevendo o que o personagem vê, e perdemos todas as outras possibilidades de imergir nosso leitor em nossas histórias
Como usar esses recursos descritivos, então?
Bom, que tal usarmos como base o trecho exemplificado acima?
“Sorriu. Vestiu roupa, envolveu-se numa manta e saiu. Blanca começou a andar em direção do rio.”
É meio sem graça, né? O problema é que ele vai direto ao ponto e exclui a experiência única do personagem. Ok, claro, a gente poderia acrescentar no texto as opiniões e sentimentos do personagem:
“Sorriu com um novo e delicado sorriso de mulher. Vestiu roupa velha do Verão passado, envolveu-se numa manta e saiu em bicos de pés para não despertar a família. Blanca começou a andar em direção do rio. Tudo estava ainda calmo.”
Mas ainda assim, falta algo…
“Sorriu com um novo e delicado sorriso de mulher. Vestiu roupa velha do Verão passado, que quase não lhe servia, envolveu-se numa manta e saiu em bicos de pés para não despertar a família. Lá fora o campo sacudia-se da modorra da noite e os primeiros raios de Sol cruzavam como sabres os picos da cordilheira, aquecendo a terra e evaporando o orvalho numa fina espuma branca que apagava os contornos das coisas e fazia da paisagem uma visão de sonho. Blanca começou a andar em direcção do rio. Tudo estava ainda calmo, os seus passos esmagavam as folhas caídas e os ramos secos, produzindo um leve crepitar, único ruído naquele vasto espaço adormecido.”
Trecho original de A casa dos espíritos, de Isabel Allende
Agora sim! Quando acrescentamos as sensações ao texto, ele se torna muito mais vívido para o leitor; é como se, de alguma maneira, ele pudesse sentir aquilo que o personagem sente ao tentar imaginar a cena.
Essa é a importância de usar os 5 sentidos em uma narrativa: dar um senso de profundidade para a realidade ficcional e, assim, transportar o leitor para este novo mundo sob uma nova pele.
Agora que já entendemos por quê devemos escrever sensorialmente, como fazer isso?
Como já discutimos no em XX, que — via de regra — é mais interessante buscarmos mostrar algo para o leitor, e não contar, isto é, não entregar a de forma informação hiper-digerida.
E usar os sentidos é uma ótima maneira de fazer isso, se o autor considerar a subjetividade do narrador ou personagem!
Em outras palavras, podemos descrever uma cena de modo super objetivo (ex. “estava calor”) ou podemos levar em consideração várias sensações que levam à percepção daquela cena (ex. “eu sentia o gosto salgado do suor enquanto minha camisa se grudava em minhas costas mesmo quando estava parado”).
Mas os sentidos não são somente um recurso descritivo: eles são também uma estratégia para estabelecermos a relação do personagem com a narrativa. Ou seja, dependendo do estado emocional e da personalidade daquele indivíduo, ele vai sentir e perceber as coisas de forma diferente, com diferentes focos.
Trazendo um exemplo bem simples, se a narrativa trata de alguém empático e com gosto pela moda, as descrições de um ambiente podem envolver os indivíduos à sua volta e as roupas que eles vestem.
Por outro lado, no caso de um personagem mais introspectivo e ligado à natureza no mesmo ambiente, ele pode notar como há um número realmente grande de pessoas e o brilho da luz artificial.
A recomendação, então, é que, ao usar os sentidos para descrever uma cena, o autor opte por criar imagens e metáforas altamente específicas, traduzindo as peculiaridades da cena. Afinal, descrições mais gerais não permitem essa relação íntima com a narrativa.
Um ótimo exemplo de como as descrições podem envolver as personagens é a cena a seguir:
“Vi os olhos de Belonísia cintilarem com o brilho do que descobríamos como se fosse um presente novo, forjado de um metal recém-tirado da terra. Levantei a faca, que não era grande nem pequena diante dos nossos olhos, e minha irmã pediu para pegar. Não deixei, eu veria primeiro. Cheirei e não tinha o odor rançoso dos guardados de minha avó, não tinha manchas nem arranhões. Minha reação naquele pequeno intervalo de tempo era explorar ao máximo o segredo e não deixar passar a oportunidade de descobrir a serventia da coisa que resplandecia em minhas mãos. Vi parte de meu rosto refletido como num espelho, assim como vi o rosto de minha irmã, mais distante. Belonísia tentou tirar a faca de minha mão e eu recuei. “Me deixa pegar, Bibiana.” “Espere.” Foi quando coloquei o metal na boca, tamanha era a vontade de sentir seu gosto, e, quase ao mesmo tempo, a faca foi retirada de forma violenta. Meus olhos ficaram perplexos, vidrados nos olhos de Belonísia, que agora também levava o metal à boca. Junto com o sabor de metal que ficou em meu paladar se juntou o gosto do sangue quente, que escorria pelo canto de minha boca semiaberta, e passou a gotejar de meu queixo. O sangue se pôs a embotar de novo o tecido encardido e de nódoas escuras que recobria a faca.”
Torto Arado – Itamar Vieira
Mas vamos esclarecer uma coisa:
Uma boa descrição não é sinônimo de um texto floreado e lento. Não. Há várias maneiras de incorporar estes recursos e ainda respeitar o ritmo do texto e o estilo pessoal do autor.
Sim, os exemplos que demos deixam bem evidentes os trechos descritivos, mas veja um outro exemplo:
Poema nos meus 43 anos
terminar sozinho
no túmulo de um quarto
sem cigarros
nem bebida—
careca como uma lâmpada,
barrigudo,
grisalho,
e feliz por ter um quarto.
…de manhã
eles estão lá fora
ganhando dinheiro:
juízes, carpinteiros,
encanadores , médicos,
jornaleiros, guardas,
barbeiros, lavadores de carro,
dentistas, floristas,
garçonetes, cozinheiros,
motoristas de táxi…
e você se vira
para o lado pra pegar o sol
nas costas e não
direto nos olhos.”
Charles Bukowski
Os últimos versos desse poema são um caso em que uma experiência sensível foi acrescentada ao texto; sim, de é muito mais sutil do que os outros textos apresentados, mas, ainda assim, contribui positivamente para a inserção do leitor.
Enfim, é usando de um olhar subjetivo que podemos contar histórias envolventes e complexas, e, com toda a certeza, as descrições são um aspecto central disso.
Não tenha medo de explorar, a escrita é uma habilidade (e nós só aprendemos tentando!). Use e abuse das metáforas e sensações. Afinal, uma história não é sobre o que acontece, mas sim como acontece.
Mãos à obra
Tendo isso em vista, eu proponho um desafio pra você para terminarmos esse Escrita Criativa! Fique tranquilo, é bem simples.
Olhe ao seu redor, o que você vê? Escolha algo que te chama a atenção e tente descrevê-lo. Quais são suas características mais marcantes?
Agora escolha um objeto que esteja ao seu alcance e o toque. Como é a sensação? Descreva a textura e o formato do objeto.
Preste atenção nos sons. O que você ouve? Descreva o que você escuta.
Você sente algum cheiro no momento? Preste atenção, tente identificar os odores do ambiente em que você está.
E, por fim, os sabores. Tente descrever sua comida favorita (ou uma bola de sorvete, caso você tenha dificuldade de escolher uma). Qual a sensação dela na sua boca?
Esse exercício, além de ser ótimo para nos conectar ao momento presente, é uma maneira de trabalharmos nossas percepções e nosso repertório para descrições.
Qual foi o sentido mais difícil de descrever para você? Nos conte aqui nos comentários!
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