No último mês, foi postada a ,primeira parte deste post. Falei sobre a adaptação da animação Avatar: A Lenda de Aang para o filme Avatar: O Último Mestre do Ar, focando mais no enredo e nas diferenças gerais entre as narrativas. Recomendo a leitura da primeira parte para melhor entendimento do assunto que será tratado aqui.
Neste post, falarei, mais especificamente, sobre as personagens. Focarei nos personagens principais: Aang, Katara, Sokka e Zuko.
Antes, porém, é preciso apontar o óbvio: a representatividade no filme é péssima. A série animada é explicitamente influenciada por diversas culturas asiáticas, o que reflete tanto na aparência das personagens quanto nas sociedades, estilo de luta e vários outros pontos do universo da história. O primeiro grande erro do filme quando se trata dos personagens é o completo descaso com esse fator tão crucial da animação.
Os personagens principais são embranquecidos, assim como qualquer personagem secundário que esteja do lado dos protagonistas. Os únicos asiáticos são os figurantes e os vilões. No caso dos vilões, há o adendo de serem asiáticos de pele escura. Esse tipo de representação é ainda mais chocante ao se levar em conta que o diretor do filme M. Night Shyamalan, é indiano. Katara e Sokka, por exemplo, deveriam ter sido retratados como tendo a pele mais escura pela maneira como são apresentados na animação. O descaso aparece até na pronúncia dos nomes dos personagens, dos lugares e das lutas (quem é “Ong” e o que diabos é uma “Agni Key”?).
Tendo isso em mente, parto para a análise de cada um dos personagens.
Aang:
Um dos pontos principais de quem Aang é como personagem, é o fato de ele ser uma criança de 12 anos e agir exatamente como uma. Sokka, Katara, Zuko e mais um grande grupo das pessoas com que Aang se relaciona durante sua jornada são crianças obrigadas a amadurecerem por conta da guerra, tendo que ganhar uma sobriedade forçada por conta do ambiente em que vivem. Aang, em seu amor por se divertir e sua alma leve, serve para lembrar que os personagens que vemos são tão crianças quanto ele e o contraste é importante para a percepção do quão absurda é a situação de todos eles. Além disso, essa sua vivacidade é importante num mundo devastado pela guerra. Todo mundo precisa de alegria, adulto ou criança.
O Aang do filme não tem um pingo dessa vivacidade. Creio que a intenção era representá-lo como alguém equilibrado e sério, mas o resultado foi transformá-lo num personagem vazio. Havia, sim, sabedoria na alegria de Aang, e apagá-la foi mais uma tentativa de dar ao filme um tom mais “sério”, sem se atentar à complexidade que já existia na animação.
Uma coisa recorrente no filme é a substituição de partes da história original por plots que não fazem muito sentido. Na animação, por exemplo, Aang foge de seu lar ao descobrir que pretendem separá-lo de seu mentor, Gyatso, para que possa ser treinado com mais afinco para suas responsabilidades como Avatar. No filme, ele foge porque descobre que o Avatar não pode se casar nem ter filhos. Além da mudança não fazer o menor sentido em relação ao enredo original – esse tipo de tensão de “amor proibido” nunca foi o objetivo -, é mais um passo no distanciamento do personagem na animação. Aang era uma criança, fazia sentido que se sentisse pressionado com o tamanho de suas responsabilidades e com a possibilidade de ser separado da pessoa em que mais se apoiava. A proibição de ter relacionamentos românticos lhe dá razões mais “adultas” para fugir. Que criança de doze anos se preocuparia tanto com seu casamento?
Katara:
É óbvio que a tentativa de condensar uma temporada inteira de uma animação em um filme exigiria cortes. Nem tudo teria espaço para ser mostrado, o que é compreensível. Como apontei na primeira parte deste post, porém, o filme gasta tempo de tela com coisas desnecessárias e descartam-se coisas que não precisariam nem deveriam ter sido jogadas fora. A personagem que é a Katara é uma dessas coisas.
As únicas características da animação que a Katara do filme mantém são: o fato de ser uma dominadora de água, sua conexão com Aang, a perda de sua mãe e só. Os momentos que mostrariam o quão poderosa ela pode ser como dobradora sumiram da narrativa. Sua explosão de poder numa discussão com Sokka não é o que quebra o iceberg em que Aang estava preso. Na luta com Zuko, ela não tem seu momento de vantagem sobre ele. Seus momentos de conflito também são apagados. Sua frustração e dificuldade em aprender a dominar a água não só somem como são transferidos para Aang, sendo ele quem não consegue dominar o elemento. Ela não encontra barreiras para ser ensinada a dobrar água na Tribo da Água do Sul, não é ela quem se propõe a libertar os dominadores de terra. Katara, que tinha uma personalidade tão forte e multifacetada na animação, acaba sendo reduzida a narrar a história, com uma personalidade inexistente.
Sokka:
Sokka sofreu um apagamento de personalidade muito parecido com o de Katara. Na animação, um dos grandes pontos dele é ser o alívio cômico, mas comicidade não parece ser o ponto forte do filme. A parte de ele ser um guerreiro competente se mantém, mas isso é tudo. Não tem nada em sua personalidade que o diferencia do resto do elenco. Da mesma forma que não tem falhas, não tem qualidades, com uma personalidade rasa. O machismo que ele apresenta nos primeiros episódios, por exemplo, mostrava que ele estava inserido em sua sociedade e acreditava em seus valores, mesmo os ruins. Sua posterior mudança de opinião, começando pelo profundo respeito que aprendeu a ter pelas Guerreiras Kyoshi, tem muito valor por conta disso.
A falta de profundidade de sua personalidade reflete em suas relações com outros personagens. Até mesmo na animação seu romance com a princesa Yue é bem rápido, mas não há dúvidas para o espectador que os dois têm uma relação importante. Não é possível dizer a mesma coisa do filme.
Zuko:
Zuko, ao contrário dos outros personagens, tem alguma personalidade, mas ainda deixa muito a desejar. A começar pela cicatriz em seu rosto, que deveria ter sido bem mais evidente. O trauma de Zuko é representado visualmente e com muita força. No filme, a marca mal é visível e, logo, sua carga dramática diminui terrivelmente.
Falta, ao Zuko do filme, o extremo de emoções que ele demonstra na animação. No original, Zuko é explosivo, poderoso e completamente consumido por seu objetivo de capturar o Avatar, o que o torna uma ameaça real. Também tem uma sutileza e conflitos que afloram com o decorrer da série, possibilitando seu arco de redenção. No começo, porém, Zuko é inegavelmente o inimigo. No filme, a presença intimidadora que ele deveria ter não se sustenta.
Esse filme cometeu uma série de erros, que custou o apelo tanto do enredo quando dos personagens originais. A complexidade dos temas tratados na animação se perdeu no roteiro, no CGI e suas limitações, na escolha do elenco. Em compensação, analisar o que falta no filme evidencia a riqueza do original, em todos os aspectos.
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