Construir uma narrativa não é fácil. Cada meio, cada mídia, permite maneiras diferentes de contar histórias, e apresenta, por consequência, desafios diferentes. Assim sendo, adaptar histórias de um meio para o outro é sempre algo complexo e se perde muito do original nesse processo. Essa “tradução” de uma mídia para outra pode ser feita de maneira satisfatória ou não, mas levanta questões importantes sobre narrativa que valem a pena serem exploradas. É levando tudo isso em conta que o estudo de caso dessa vez é sobre a adaptação da animação Avatar: A Lenda de Aang para o filme dirigido por M. Night Shyamalan.
Como há bastante do que se falar, o post será dividido em duas partes: a primeira sobre a narrativa e o filme no geral, e ,a segunda sobre a construção dos personagens em cada versão.
Para começar, então, uma breve sinopse da animação. O filme segue a mesma premissa.
Avatar: A Lenda de Aang
Preso durante um século dentro de um iceberg, Aang é um menino de 12 anos que agora está livre do gelo. Ele descobre que tem um destino extraordinário: ser o Avatar. Ele é responsável por garantir o equilíbrio entre os mestres dos quatro elementos, que estão divididos em quatro civilizações: as tribos da Água, da Terra, do Fogo e do Ar. Elas estão perdidas no meio de guerras e destruições. Agora, sua missão é restaurar a ordem do universo. Mas antes ele tem que aprender a dominar todos os elementos.
Tom
A animação tem um tom de comédia e descontração. Os temas e assuntos sérios são muito bem expostos, tão bem que, assistindo a série como adolescentes ou adultos, é possível enxergar uma profundidade e cuidado com os personagens e suas narrativas. O humor, por isso, não fazia a animação ser menos complexa, ajudando a construir as personagens e sendo um dos pontos que tornam a animação tão gostosa de assistir.
No filme, é visível a intenção de criar um tom mais sério para a narrativa. Explorarei isso com mais detalhes na segunda parte, mas ao tentar tornar a história mais “madura” partes essenciais de quem os personagens eram foram perdidas. A mudança de tom não é a única responsável pelo filme ser uma adaptação tão ruim, mas certamente contribui para que seja tão diferente do original, no sentido de que falta algo. Afinal, se tem uma coisa que Avatar prova, é que humor por si só não torna algo livre de maturidade.
Worldbuilding e sistema mágico
Retomando um ,,post ,,de escrita criativa antigo, o sistema mágico de Avatar é de hard magic. Isso quer dizer que há regras bem estabelecidas para a mágica do universo, as dobras. O conceito de controlar água, fogo, terra e ar, de o Avatar ser o único que controla todos os quatro e que cada elemento tem uma técnica própria são parte do que tornam o mundo de Avatar tão interessante.
O mais digno de nota, porém, é como o controle dos elementos impacta nas culturas e dia a dia das pessoas. As cidades de dominadores de terra têm mecânicas próprias, os dominadores de água vivem cercados por água e gelo, a nação do fogo teve toda uma revolução industrial por conta do elemento que dominam. A mágica influencia na sociedade como um todo.
No filme, essa integração entre a dobra de elementos e a sociedade é diminuída. Na animação, por exemplo, dobradores de terra são presos em um navio da nação do fogo, cercados por metal e água para que não tenham o que controlar. No filme, os dobradores estão presos dentro de suas próprias cidades, cercados de montanhas e rochas. Além de apagar uma construção interessantíssima do original, também não explica porque os dobradores se deixaram ser aprisionados. Esse problema aparece, ainda, na maneira como os personagens lidam com os elementos. Enquanto na animação cada movimento gerava uma reação, com os estilos de luta sendo baseados em artes marciais chinesas, no filme há muita ação para pouca reação. Os personagens fazem uma série de movimentos para conseguir uma dobra simples, retirando a fluidez e ligação entre dobra e luta que há na animação.
Narrativa
Um conselho antigo que todo escritor já deve ter escutado é “mostre, não conte”, e esse é um dos pontos em que o filme mais erra em sua narrativa. É lógico que a tarefa de fazer uma temporada inteira de uma animação caber em um filme vai requerer cortes e decisões criativas diferentes do original, mas nesse caso as escolhas não funcionaram muito bem. A história de porque e como Aang acabou preso sob o gelo é contada para os espectadores pelo menos três vezes, duas através de narração e uma com um flashback. A história de Zuko e do porque ele está caçando o Avatar também é narrada, contada para nós duas vezes. Essa escolha de explicar demais as coisas, além de dar um ritmo bem ruim para a narrativa, também gasta tempo de tela que poderia ter sido usado em outros aspectos.
Adaptações
Como apontei no início, cada mídia tem suas potencialidades. Uma adaptação de Avatar para filme, por mais bem feita que fosse, não seria capaz de passar o mesmo sentimento que a animação evoca. Mesmo uma série, com mais tempo de duração, não seria capaz de tal feito. A fluidez e as expressões que uma animação pode criar não são recriáveis no live-action. O problema nas lutas e as dobras de elementos, por exemplo, é, em certa medida, por que a computação gráfica para recriar o mundo de Avatar em sua plenitude seria tão cara quanto complicada. Lógico, nem todos os problemas do filme são consequência da dificuldade de traduzir uma mídia para outra, e isso será melhor explorado na segunda parte, mas já fica claro na escolha narrativa, por exemplo.
Encerro esse estudo de caso, então, com uma espécie de manifesto: animações são uma mídia por si só. Animações podem ser sérias, maduras, infantis, rasas ou violentas. Nem tudo precisa ser adaptado para live-action, porque, se for, inevitavelmente, algo será perdido. Existem histórias que funcionam melhor escritas, outras funcionam melhor animadas, outras em filmes, outras em quadrinhos, outra em peças de teatro. Cada meio tem algo que só ele pode fazer, e, se tem uma coisa que a adaptação de Avatar deixa evidente, é isso.
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