As descrições de uma história: olhando para os autores

Que descrever bem alguma coisa é um desafio, todos nós, escritores, sabemos. Mas como os grandes autores conseguem? Como eles conseguem...

Que descrever bem alguma coisa é um desafio, todos nós, escritores, sabemos. Mas como os grandes autores conseguem?

Como eles conseguem fazer com que sintamos o mesmo que os personagens, que enxerguemos com perfeição um cenário, uma criatura mágica ou, simplesmente, uma pessoa?

É exatamente isso que vamos explorar hoje.

Não com um passo-a-passo ou um guia, mas olhando para as obras (aqui, nos restringimos à livros) e tentando extrair delas algum norte para as nossas produções.

Começando do começo

Bom, quando falamos de descrição neste post, falamos de um modo amplo. Cenários, personagens, sentimentos, ações. Ou seja, tudo aquilo que o leitor precisa visualizar.

Vale a pena destacar, já de início, a importância das descrições em uma obra. Justamente porque estamos falando de palavras.

Obras audiovisuais não têm esse tipo de problema. Mas livros, contos, poemas, seja o que for, só possuem palavras como substantivos, adjetivos, advérbios para criar uma imagem. E, convenhamos, não é nada fácil pintar com a gramática.

Pior do que isso. É algo muito pessoal. Cada autor tem seu estilo, seu modo de ver seus personagens, seus cenários — o que nos impede de criar um “Como fazer” ou um “Descrição para Leigos”.

Por esses (e talvez outros) motivos, vamos ver “na prática” como a descrição funciona.

Assim, com exemplos você terá um ponto de partida e, quem sabe, passará a perceber mais ativamente como a descrição é feita em tudo aquilo que você lê para criar um belíssimo repertório.

Analisando a situação na prática

Agora, apresentaremos alguns exemplos de descrições (tanto para o bem quanto para o mal) presentes em livros que você, provavelmente, conhece.

O Senhor dos Anéis

Vamos começar com O Senhor dos Anéis. Essa fantasia foi escrita por J. R. R. Tolkien em 1954, e sua principal característica (além da criatividade, claro) é a descrição.

O Um Anel, elemento central da narrativa dessa saga fantástica.

J. R. R. Tolkien

Para vermos como isso acontece, vamos ler um trecho:

“No meio da mesa, diante de tapeçarias tecidas penduradas na parede, havia uma cadeira sob um dossel, e ali sentava uma mulher bonita de se olhar, que era tão parecida com Elrond em suas formas femininas que Frodo adivinhou que ela era uma parente próxima dele. Era jovem, e ao mesmo tempo não era. As tranças de seu cabelo escuro não tinham sido tocadas pela neve, e os braços brancos e o rosto claro eram perfeitos e suaves, e a luz das estrelas estavam em seus olhos brilhantes, cinzentos como uma noite de céu limpo; apesar disso, parecia-se com uma rainha, e seu olhar era cheio de ponderação e sabedoria, como o olhar de alguém que conhece muitas coisas que os anos trazem. Na altura da fronte, a cabeça estava coberta com uma touca de renda prateada, enredada com pequenas pedras, de um brilho branco; mas o traje, de um cinza pálido, não tinha qualquer ornamento, a não ser um cinto de folhas lavradas em prata.”

A Sociedade do Anel. Editora Martins Fontes, 2002. Página 314

A primeira coisa que percebemos lendo a descrição de Arwen Undómiel, uma elfa, é a alternância entre a descrição física (maior parte) e as descrições subjetivas.

Vemos como é seu cabelo, sua pele, seus olhos, sua roupa. Mas também vemos que, apesar de parecer nova, já viveu longos anos e possui muita sabedoria.

Esse trecho é exemplar porque vemos exatamente o que o autor quer. Conseguimos pintar em nossa mente a personagem em sua totalidade. Não precisamos pressupor nada.

E como ele consegue? Com palavras precisas.

Ele usa os adjetivos perfeitos para a personagem. Até mesmo em momentos em que ficamos confusos, como em “Era jovem, e ao mesmo tempo não era”, a explicação que vem na sequência elimina qualquer dúvida, pois, apesar de ser algo bem subjetivo, Tolkien seleciona as características certas para que entendamos o que Frodo viu para que fosse descrita assim.

Vamos ver, então, outra obra bem ligada à fantasia.

Percy Jackson & Os Olimpianos

“Quando finalmente voltei a mim de vez, não havia nada de estranho com o lugar ao meu redor, a não ser que era mais agradável do que eu estava acostumado. Estava sentado numa espreguiçadeira em uma enorme varanda, olhando ao longo de uma campina para colinas verdejantes a distância. A brisa tinha cheiro de morangos. Havia uma manta sobre as minhas pernas, um travesseiro atrás do pescoço. Tudo isso era ótimo, mas minha boca me dava a sensação de ter sido usada como ninho por um escorpião. A língua estava seca e pegajosa, e todos os dentes doíam . Sobre a mesa ao lado havia bebida num copo alto. Parecia suco de maçã gelado, com um canudinho verde e um guarda-chuva de papel enfiado em uma cereja.”

O Ladrão de Raios. Editora Intrínseca, 2010. Página 66

Em O Ladrão de Raios, primeiro livro da série Percy Jackson e os Olimpianos e de onde retiramos o trecho acima, Rick Riordan nos apresenta um mundo no qual deuses gregos são reais e totalmente ligados às nossas vidas cotidianas.

Capa de O Ladrão de Raios, primeiro livro da série Percy Jackson & Os Olimpianos

Rick Riordan

Comparando com o trecho anterior, vemos que esta é uma descrição mais simples. Não possui tantos adjetivos, mas ainda assim é o suficiente para visualizarmos a cena.

Os poucos elementos para descrever a cena não são prejudiciais porque conhecemos os objetos e as cenas que Riordan nos fala — diferente de Tolkien, que além de nos apresentar uma personagem que não havia aparecido na história antes, criou um mundo completamente novo, muito diferente do que conhecemos.

Para finalizar essa parte, vejamos um exemplo “peculiar”:

Fallen

“Ela deu uma olhada nos outros três alunos parados em semi-círculo em volta dela. Na sua última escola, a Dover Prep, foi durante o tour pelo campus no primeiro dia de aula que Luce conhecera a melhor amiga, Callie. Num campus onde todos os outros alunos tinham praticamente sidos desmamados juntos, o fato de Luce e Callie serem as únicas que não vinham de famílias tradicionais da escola já era afinidade o suficiente. Mas não foi preciso muito tempo para que as duas garotas percebessem que partilhavam também a mesma obsessão por filmes antigos — especialmente os de Albert Finney. Depois de descobrirem, no primeiro ano, enquanto assistiam a Um caminho para dois, que nenhuma das duas conseguia fazer pipoca sem disparar o alarme de incêndio, Callie e Luce não desgrudaram mais uma da outra. Até… até serem obrigadas.”

Fallen. Editora Galera Record, 2013. Página 21

Em Fallen, de Lauren Kate, acompanhamos Luce em sua adaptação a um reformatório, enquanto tentamos entender o que a levou a estar ali e quais as consequências que essa mudança vai ter em sua vida.

Capa de Fallen, primeiro livro da série de mesmo nome.

Lauren Kate

Bom, o que vemos nesse trecho é a completa falta de descrição. Sim, selecionamos justamente essa parte para mostrar as consequências da ausência de descrição em uma história.

No começo do parágrafo temos a expectativa de que os jovens que estão ao lado da personagem principal sejam descritos. Mas, sem nenhum aviso, a autora muda a narrativa e apresenta um fato do passado de Luce.

E, mesmo nessa mudança, tanto a antiga escola quanto a antiga amiga são descritas de maneira muito superficial.

Vimos apenas alguns trechos. Claro que obras inteiras, ainda mais livros, vão trazer mais detalhes do que os apresentados. Mas conseguimos perceber como a descrição pode ser feita olhando para o que os autores fazem.

Como descrever, então?

Bem, é aqui que as coisas se complicam.

Não existe um “como fazer”. Não existem regras e muito menos uma maneira certa de se descrever.

Tudo envolve estilo e prática. É escrevendo e reescrevendo que percebemos se colocamos poucos detalhes, muitos detalhes ou a quantidade exata, e se nos damos melhor com vários adjetivos ou poucos.

Além disso, cada gênero pede uma descrição diferente.

Vimos que Tolkien precisa de muitos adjetivos e de uma precisão muito grande. Isso porque nunca vimos o mundo que ele quer nos mostrar. Enquanto isso, um cronista pode se dar ao luxo de apresentar menos detalhes porque fala da nossa vida cotidiana e do vemos todos os dias.

Mas isso não quer dizer que não existam dicas. O autor Ernest Hemingway, em seu livro Tempo de Viver, nos dá algum norte para escrever.

Ernest Hemingway

Ele recomenda que:

  • Observemos o hoje e tentemos descrever o vemos e o que sentimos quando vemos no nosso dia a dia;
  • Devemos construir nossa descrição com nosso conhecimento pessoal;
  • Sobre personagens, especificamente, diz que precisamos descrever pessoas reais, não personagens irreais, ou seja, que devemos nos basear naqueles que conhecemos para definir as características de nossas criações.

As demais dicas e seus detalhes podem ser encontradas neste link.

Existe também a técnica da Escrita Perigosa, criada por Tom Spanbauer. Alguns passos dessa técnica, como o Recording Angel (Gravação Anjo) ou a técnica de evitar advérbios ou medições como idade e altura, te levam a refletir sobre como o processo de descrição pode funcionar em um texto e te fazer explorar caminhos bem diferentes do tradicional.

Tom Spanbauer

As técnicas que falamos, além de outras bem interessantes, podem ser vistas em detalhes aqui.

Para finalizar

É. Realmente não é fácil descrever alguma coisa. Mas também não é impossível. Vimos grandes (e nem tão grandes) exemplos de que existe um meio. Um não, vários.

Tente encontrar seu gosto pessoal em suas leituras e em seus textos. Teste novos estilos sem medo. Descubra como cada tipo de descrição se encaixa em cada gênero literário que você escreve. É na tentativa e erro que solucionamos a maioria dos problemas de escrita.

Com o tempo, você terá uma descrição incrível para chamar de sua.


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