Afinal, existe um “falar correto” do português?

É muito comum ver pessoas se corrigindo por "falarem errado" o português... mas será que elas estão erradas mesmo? Este post é sobre isso!

Você já deve ter ouvido por aí muitas pessoas corrigindo ou repreendendo umas às outras ao falarem, justificando que estavam falando “errado” a língua portuguesa. Mas, será que estavam mesmo? O que definimos como correto e incorreto quando se trata de linguagem? É sobre isso que iremos discutir!

Introdução

Ao falarmos uma língua, seja ela materna ou não, nos deparamos muitas vezes com dúvidas quanto aos termos corretos a serem utilizados, a ordem das palavras na estrutura da sentença entre outras questões que podem surgir de tempos em tempos.

Porém, um comportamento muito recorrente na sociedade é o de diminuição do outro por conta da maneira com que este produz sua linguagem – diferente da norma determinada culta/ padrão – e a expressa no mundo.

Essa atitude, reproduzida conscientemente ou até mesmo de forma automática por nós, se faz problemática para com os indivíduos da sociedade e é muito interessante para ser discutida e mais, desconstruída. E é justamente o intuito deste texto!

Iremos apresentar alguns estudos linguísticos a respeito das outras possibilidades de produção de fala do português – para além da norma padrão, da qual falaremos um pouco também – e como trabalhar essa questão para que essas realizações de fala sejam melhor compreendidas e mais aceitas na sociedade.

Norma “culta” ou padrão versus…todo mundo!

Muitas vezes nos referimos a esse saber “falar corretamente” a norma culta ou padrão como um parâmetro do falar correto. Dentro dessa lógica, se você está de acordo com as regras estabelecidas na norma padrão, você sabe falar português. Mas, então, quem desvia das normas fala o quê?

Além de estranha, a afirmação parece um tanto extrema e excludente, não? Afinal ela deixa de lado os outros falares possíveis, que por vezes divergem sim da norma padrão, mas continuam sendo parte da língua portuguesa que conhecemos.

A linguista Janaísa Viscardi, pesquisadora colaboradora da UNICAMP, trata desta temática em um vídeo chamado “Não sabe português?: preconceito linguístico e as mentiras que te contam” em seu canal homônimo no Youtube, em que ela divulga e populariza os conhecimentos que se tem sobre a ciência da linguagem tanto para o público da área quanto para leigos.

Viscardi argumenta que, geralmente, esses outros tipos de falar ocorrem naturalmente em nosso cotidiano, e todos os brasileiros conseguem produzir essa fala coloquial espontânea.

Mesmo assim, ouvimos de novo e de novo a ideia de que não sabemos falar português “tão bem assim”. Ora, se aprendemos uma língua materna desde muito pequenos, por que essa insistência de que não sabemos falar português?

Há uma explicação para isso: desde o ensino básico somos ensinados a prestigiar e idealizar essa norma, que é vinda de uma certa elite cultural e que está alicerçada em uma construção de autoridade antiga, que dita como a sociedade deve se comunicar.

O curioso é que não fazemos o uso do português idealizado da gramática, mas a temos em mente como referência comum para medir o quanto dominamos o português brasileiro, implicitamente o quão cultos somos ao falar esta língua.

Imagem disponível em: ,https://images.app.goo.gl/7nrTNSihpzcXHTAV9

Explicando um pouco mais…

Há uma distância considerável entre o uso natural da língua e o que foi convencionalmente determinado como norma padrão. No uso diário, muitas dessas convenções da norma não são estritamente cumpridas – como as concordâncias nominais, adverbiais, verbais e pronominais, por exemplo: as menina, eles diz, ir no cinema, pra mim fazer, etc.

Esse português mais “culto” – e levantamos aqui que essa ideia coloca em questão, o que é “culto”? o português popular seria, então, inculto? – é considerado uma variável linguística de prestígio porque parte de classes sociais mais abastadas e socialmente influentes.

Por que a preferência recorrente pela gramática padrão?

A essa altura, você leitor(a) já deve estar se perguntando quando toda essa noção de gramática começou?

Nas palavras de Aquiles Tescari Neto, professor da UNICAMP da área de Teorias Linguísticas e Ensino de Língua Portuguesa no Departamento de Linguística do IEL, em sua participação no último episódio do nosso podcast “Canto da Sereia”, a “gramática já nasceu normativa”, pois desde os tempos antigos, havia o intuito de manter “pureza” do idioma em sua forma e a maneira para tal era consolidar essas regras estabelecidas em uma gramática para ser repassada como norma daquela língua para os falantes.

Este projeto tão antigo propunha que a gramática serviria como meio ancilar para leitura, produção e entendimento dos textos. Sua forma foi tão rigidamente elaborada que seguiu por séculos desta forma e permanece até hoje com os mesmos pretextos para a auxiliar na educação.

Isso se mantém assim pois, à medida em que o latim foi se espalhando pelos países, a língua foi variando naturalmente com as formas de falar de cada região. Então, houve a formação concomitante de línguas e monarquias nacionais, e assim a gramática recomendada – ou melhor, imposta – para o uso comum era a norma da elite, considerada norma de prestígio social.

Inclusive, é aí que surge a associação e a convenção de nomear esta norma mais prestigiada como “culta”, presumindo que quem produz esse tipo de gramática é alguém que possui cultura e faz uso de seu conhecimento, enquanto que, nessa lógica, quem não possui o domínio desta gramática – a plebe – é inculto.

No século XIX foi desenvolvida a norma padrão do Brasil, com sua base tirada da gramática normativa dos portugueses e posta para os brasileiros para padronizar o uso “culto” e “correto” da língua portuguesa.

Como aponta Viscardi no vídeo citado acima, o uso da gramática como referência para conhecimento do português é muito mais imaginário do que efetivo na prática de fala. Isso justamente porque as pessoas não falam assim naturalmente!

A gramática normativa serve mais como uma ferramenta para ser utilizada em contextos formais específicos do que uma medição de saberes da língua para uso diário contínuo.

Claro, o uso da gramática nestes casos formais, como uma entrevista de emprego, uma escrita para a publicação de um artigo, uma conferência ou uma palestra é bem vindo e recomendado, mas dentre os inúmeros gêneros textuais falados e escritos que entramos em contato constantemente, muitos deles não requerem uma monitoração estilística ou adequação da linguagem a norma padrão.

Aliás, esses muitos gêneros textuais são capazes de serem interpretados e produzidos pelas pessoas justamente por elas saberem sim como usar a língua, como em listas de compras, receita de farmácia, mensagem de WhatsApp, email, jornal, propagandas, entre outros.

Porém, como já discutimos, é pela insistência do uso da gramática padrão que as pessoas vão norteando seu nível de conhecimento com a língua, e se rebaixam muitas vezes, afirmando não saberem português.

Explicando o Preconceito Linguístico

Em muitos casos em que são utilizados diferentes formas do português que fogem da norma tida como padrão, ocorrem casos de preconceito linguístico.

Mas o que significa isso?

Este preconceito se caracteriza como sendo um comportamento desrespeitoso, uma forma de repugnância com intuito de diminuir e constranger o outro, apenas por este falar de uma maneira diferente. Recentemente, este termo tem sido muito importante e bastante utilizado nas plataformas midiáticas, principalmente nas redes sociais, para denunciar quem o comete.

Imagem disponível em: ,https://images.app.goo.gl/Jr6MkQF9MQSVHLEN8

Há muitos anos este preconceito tem sido praticado e reproduzido por diferentes gerações, sendo também transportado para os meios virtuais.

E exemplos não faltam! Nas discussões no twitter é possível visualizar inúmeros comentários dessa espécie:

Imagem disponível em: ,https://images.app.goo.gl/HLnV2wnc7NRAcHfc9

Imagem disponível em:,https://falauniversidades.com.br/o-que-e-preconceito-linguistico/

Como visto nos exemplos acima, são feitas muitas repressões, sob o argumento de que a pessoa não sabe português e precisa aprender a escrever melhor para poder entrar em uma discussão ou colocar sua opinião no mundo.

Restringir e determinar quem pode ou não se expressar em função de falar ou escrever de um certo modo é uma atitude absurda e contraditória com tudo o que discutimos até agora, visto que o modo de comunicação espontâneo, em sua maioria, não segue as regras prescritas na gramática normativa.

As pessoas são diferentes. Elas vêm de contextos diferentes e, inevitavelmente, vão falar de maneiras diferentes. A história de vida de alguém não a torna menos humana; diferentes sotaques, modos de dizer e habilidades de escrita não fazem de ninguém menos importante.

Claro, em situações coloquiais, como conversas nas redes sociais e presenciais, os falantes não monitoram suas produções da mesma forma que em outros contextos. Porém, essa questão não se restringe à isso: há diferentes formas de falar e, nos contextos adequados, todas são igualmente válidas.

Como educar os falantes de português, então?

Em função de percepções de certo e errado na língua, a doutora em linguística pela UFPE e especialista em Linguística Aplicada para o Ensino de Língua portuguesa pela mesma instituição, Solange Carlos Carvalho diz em seu artigo intitulado “Preconceito linguístico: o papel do professor” que

“Quando se fala de certo e errado em língua, compreende-se uma ingenuidade no trato da língua. Afinal, qual o certo e o errado quando se está em jogo a construção de sentidos? As discussões entre gramáticos e linguistas sobre a noção de erro já vem contando algum tempo, fazendo-se necessário a compreensão da noção de “desvio” e de “variação”.

Ou seja, o preconceito se dá pelo contato com um uso de uma variação da língua portuguesa, que desvia da norma tida como padrão, e, neste contato, este uso é enxergado como algo inferior ou desprezível.

A língua segue estruturas regulares, mesmo quando não está de acordo com a norma; é estranho dizer isso, mas essas “variações populares” não estão de fato erradas, elas só são diferentes! Mas a repetição inconsciente deste comportamento de inferiorização de alguém em razão da sua forma de falar, além de não ser coerente com a ideia de “erro”, pode reforçar estereótipos e a opressão de grupos sociais e culturais já oprimidos.

Então, é com essas questões em mente que a questão da variação linguística deve ser trabalhada pelos professores em sala de aula.

Faz parte do papel do(a) professor(a) apresentar a importância da norma padrão, que serve para diversos fins e é exigida em diversos contextos. Porém, é importante também apresentar e validar as variações próprias dos estudantes, aprendidas em seu meio social e usadas em outros contextos.

Assim, partindo desta relação entre ambas as performances de linguagem, os alunos as entenderão como válidas igualmente dentro do que conhecemos como a língua portuguesa, tendo o conhecimento necessário para se desenvolver e navegar nas diversas áreas da vida cotidiana e profissional.

Nas palavras de Carvalho, “o professor deve respeitar os aspectos culturais e linguísticos do aluno antes da escola, para assim desenvolver nele um sentimento de segurança e autoestima.” Desta forma, o aluno não será inibido pelo constrangimento da sua fala, possibilitando um bom ambiente de aprendizagem e convivência.

O que levar como aprendizado?

As questões abordadas ao longo do texto são capazes de nos fazer pensar em nossas ações em relação ao outro e a nós mesmos enquanto falantes do português brasileiro e nos costumes conscientes ou inconscientes de correção do outro ou da autocorreção e auto depreciação.

Vimos que o preconceito se trata de uma questão antiga, da colocação de uma fala de prestígio em detrimento de outros tipos de realizações populares, o que se mantém com a intenção de diminuir e condenar o outro por sua fala, seja pessoalmente ou virtualmente, como nos exemplos dos posts ofensivos nas redes sociais.

Desconstruir estes paradigmas tão rigorosos sobre o que é “falar corretamente” a língua tem o intuito libertar o povo brasileiro de restrições quanto a formas de expressão na sociedade, sem tanta preocupação de estar atendendo perfeitamente as regras prescritas da gramática normativa imposta e aceitarem as múltiplas variações regionais da língua.

Portanto, o papel da escola neste caso se faz muito importante para ensinar ao estudante a importância que há em cada gramática – da pertencente a norma padrão até a dele próprio – e que os usos de cada uma variam de acordo com o que se pede para cada situação, e que é possível se adequar a qualquer forma de manifestar a linguagem.

Desta forma, será possível que as pessoas tenham mais compreensão umas com as outras e possam validar as múltiplas variações do português brasileiro. Além de entenderem sua própria fala como legítima e que a questão de “falar errado” depende muito mais de uma questão de poder, pois na fala espontânea “vareia” muito o referencial!

Referências:

CANTO DA SEREIA – O PODCAST DA ODISSEIA: NORMA PADRÃO – PRA QUE SERVE, SERVIU, SERVIRÁ. [Locução de]: Heloisa Marques, Rubens Lira, e prof. Aquiles Tescari Neto. [S.l.]: Canto da Sereia, 09 ago 2022. Podcast. Disponível em: ,https://open.spotify.com/episode/55WlbNamn0KMFEzDlpXJ37?si=rWY9XObbRnOXk5TUaf1sqg&utm_source=copy-link. Acesso em: 28 ago 2022.

CARVALHO, Solange. Preconceito linguístico: o papel do professor. Pesquisa Escolar Online, Fundação Joaquim Nabuco, Recife. Disponível em: ,http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar. Acesso em: 30 ago 2022.

JANA VISCARDI, NÃO SABE PORTUGUÊS?: PRECONCEITO LINGUÍSTICO E AS MENTIRAS QUE TE CONTAM, 2022. Jana Viscardi, 1 vídeo (14:42 minutos). Disponível em: ,https://www.youtube.com/watch?v=15RwEQ_OOd4. Acesso em: 30 ago 2022.


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Isabela Gemma
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