A poesia é um gênero que divide opiniões. Há aqueles que amam, há aqueles que não conseguem gostar. Mas, se você chegou até aqui, com certeza deve se interessar.
E, se você gosta, certamente percebeu que não é um gênero muito padronizado. Existem os mais diversos tipos de poemas por aí, desde aqueles que são tão grandes quanto livros de 300 páginas, até os de apenas uma linha ou uma palavra.
Mas por que são tão diferentes? E pior: o que muda entre um e outro?
É sobre isso que vamos conversar hoje! Então, se você já escreve ou quer se aventurar nesse mundo poético, leia esse post até o final.
Para começar
Existem algumas ideias pré-concebidas sobre poesia:
Só poemas antigos seguem uma estrutura rígida, os atuais são livres; ou então só a poesia que utiliza regras de metrificação e de rimas que é uma poesia de verdade, a poesia moderna e contemporânea é sem sentido e não é literatura.
Pois é. Talvez você já tenha ouvido isso. Mas, como sempre, nada é tão simples assim.
As diferenças entre os tipos de poemas não são tão claras a ponto de poderem se reduzir a um momento histórico ou à presença ou ausência de regras. Existem nuances que precisam ser consideradas.
E, para entendermos essas nuances, precisamos entender um pouco a estrutura de um poema. Mas não se preocupe, não vamos entrar em detalhes, senão precisaríamos de um post só para isso.
Um pouco de teoria
Sílabas poéticas
Em alguns tipos de poesia, a quantidade de sílabas é rígida e não pode ser alterada.
Você sabia que existem até mesmo nomes específicos para cada tipo de verso de acordo com quantas sílabas ele possui?
Um verso monossílabo tem uma sílaba poética, um dissílabo tem duas, e assim por diante, até o verso dodecassílabo ou alexandrino, com doze sílabas poéticas.
E você percebeu que falamos de sílabas poéticas, não apenas sílabas. É porque são coisas diferentes.
As sílabas poéticas podem ignorar o limite entre duas palavras, levando em conta apenas os sons.
Assim, quando há o encontro de duas vogais, como, por exemplo, em “de ano em ano continuo nascendo”, elas são unidas em uma única sílaba.
O exemplo seria dividido, então, da seguinte forma: “de a / no em / a/ no / con / ti / nuo / nas / cen”.
Mas olhar o poema sob esse prisma não é obrigatório, então o autor pode tanto considerar uma sílaba única quanto duas separadas para a contagem final do verso.
E não, não esquecemos da última sílaba no exemplo anterior. A contagem deve parar sempre na última sílaba tônica da última palavra do verso.
As estrofes
Assim como os versos, as estrofes podem ser classificadas de acordo com a quantidade de versos que possuem. Monóstico é o nome da estrofe com um verso e quarteto, o nome da estrofe com quatro versos, por exemplo.
Se quiser saber mais sobre versos e estrofes, entre neste link.
Versos regulares e Versos livres e soltos
Bom, os versos regulares seguem todas as regras que vimos antes. Possuem números sempre iguais de sílabas poéticas e suas estrofes apresentam sempre o mesmo número de versos.
Os maiores exemplos de poemas regulares são o Soneto — sim, como aqueles que Camões escrevia —, com dois quartetos e dois tercetos, além de versos decassílabos, e o haikai, com uma estrofe em terceto, cinco sílabas no primeiro verso, sete no segundo e mais cinco no terceiro verso.
Como exemplo de um soneto, o clássico poema de Luís de Camões:
Amor é fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer
É um não querer mais que bem querer
É solitário andar por entre a gente
É nunca contentar-se de contente
É cuidar que se ganha em se perder
É querer estar preso por vontade
É servir a quem vence, o vencedor
É ter com quem nos mata lealdade
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Da obra “Rimas” (1598)
Luís de Camões
Já os versos livres não têm um padrão definido de sílabas, mas geralmente mantêm um padrão de rimas, enquanto os versos soltos apresentam uma métrica padrão, mas não têm rima.
O grande clássico Pronominais é um ótimo exemplo de um poema com versos soltos.
Pronominais, de Oswald de Andrade
Dê-me um cigarro
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido
Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
Deixa disso camarada
Me dá um cigarro.
Do livro “Pau Brasil” (1925)
Oswald de Andrade
Você pode ler mais sobre eles aqui.
Mas quando eu uso cada tipo?
Como sempre falamos aqui, quando você quiser. O processo de escrita é seu e não deve existir amarras no seu processo criativo.
Porém, caso queira uma ajuda, vamos conversar agora sobre uma parte muito importante de qualquer texto: a interpretação.
Desde o começo, estamos falando sobre poemas que seguem uma métrica e um padrão rígidos e sobre poemas que não têm um padrão definido.
Mas seria essa a única diferença entre esses “dois tipos” de poemas?
Vamos voltar um pouco no tempo para entender: até o século XX, dominava a poesia regular, principalmente com a popularidade dos poetas parnasianos, que defendiam a arte pela arte.
No início do século XX, autores como Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Manuel Bandeira propõem uma quebra radical desses padrões e iniciam um movimento conhecido como Modernismo — cujo ponto inicial, a Semana de Arte Moderna, completa 100 anos em 2022.
Catálogo da exposição da Semana de Arte Moderna, realizada em fevereiro de 1922
Esses autores pregavam contra regras e lutavam pela liberdade artística.
Para vermos as diferenças, vamos comparar dois poemas bem emblemáticos.
Ora (direis) ouvir estrelas, de Olavo Bilac
“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto…
E conversamos toda a noite, enquanto
A via-láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: “Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?”
E eu vos direi: “Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas.
Da antologia “Poesias” (1888)
Olavo Bilac
O primeiro (famoso) poema é um soneto, escrito pelo maior poeta parnasiano do Brasil, Olavo Bilac, fundador da Academia Brasileira de Letras.
Sua métrica é estável, alternando entre versos decassílabos e dodecassílabos, sua rima é padronizada e suas estrofes são delimitadas pelo que o soneto exige.
O que percebemos nele? Uma musicalidade única, uma vez que o ritmo é constante durante a leitura. O que combina bem com a temática, romântica e reflexiva.
Poética, de Manuel Bandeira, lido na Semana de Arte Moderna
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor.
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas
e as diferentes maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
Do livro “Libertinagem” (1930)
Manuel Bandeira
O segundo poema, também famoso, não tem nenhum padrão, seja de sílabas, rimas ou estrofes.
Ainda assim, percebemos claramente o sentimento que o autor quer passar: revolta, contestação. Podemos até dizer que sua indignação era tanta, que mal se concentrou em um padrão.
Pois bem, as principais diferenças estão nas sensações que os poemas passam. Um traz um romantismo claro e puro, e o outro, intensidade e irreverência.
Então, quando quiser se expressar com lirismo, ou quando seu assunto ou tema conversar com uma musicalidade forte e expressiva, não tenha medo de explorar os mais diversos tipos de poesia regular (você pode encontrar mais exemplos aqui).
Mas, quando quiser que a mensagem tenha mais destaque que a escrita em si, não se prenda às regras e deixe sua escrita fluir livre, para que as palavras tenham mais importância.
Para finalizar
Ufa, esse foi um post com bastante coisa para ler.
No entanto, conseguimos ver que a poesia tem uma complexidade que vai além do domínio da língua. Por isso mesmo, tem tantos fãs e tantos haters.
Por que não aproveitar que a Semana de Arte Moderna faz 100 anos justamente nesse mês e ler os poemas de grandes autores modernistas?
Quem sabe até ler os de seus antecessores, os parnasianos, e procurar as diferenças entre eles?
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