No Escrita criativa de hoje, damos sequência ao texto mais lido de toda a história do blog da Odisseia: ,Como escrever uma cena de sexo em um texto não erótico.
Então, se preparem, porque hoje vamos falar de um assunto que carrega muitas emoções — as cenas calientes de um livro.
O objetivo desse texto não é discutir “como” escrever essas cenas, isso já está muito bem explicado no texto anterior. Não, o objetivo agora é pensar quando e porquê de ter cenas hot em um texto narrativo, considerando sua importância em um enredo.
Além disso, depois pensaremos o tema dentro de uma perspectiva social e literária, afinal, esse é um assunto bem complexo.
PARTE 1
O que é uma cena hot?
Bem, a palavra hot vem do inglês e significa, literalmente, “quente”.
Explicando melhor, cenas “quentes” são aquelas que retratam momentos de intimidade física entre os personagens, explorando tanto seus desejos e fantasias quanto os episódios que vivenciam carnalmente. E isso pode ser um beijo, uma preliminar, por exemplo.
O ponto central é a intensidade da cena, que carrega uma alta tensão sexual porque trata da conexão física entre os personagens.
Mas não confundam: não é só livro erótico que contém cena hot! A diferença é que a literatura erótica tem esse tipo de conteúdo como centralidade da narrativa, isto é, ele é o foco da obra.
Porém, outros gêneros podem muito bem ter cenas HOT, seja um drama ou uma distopia.
Um exemplo desse último gênero é o livro 1984, escrito por George Orwell, em que o protagonista, Winston Smith, conhece Júlia, com quem tem alguns encontros.
“Por um momento, ele se sentiu furioso. Naquele mês, volvido desde que a conhecera intimamente, modificara-se a natureza do seu desejo. No começo, pouca sensualidade houvera nele. O primeiro contacto amoroso fora simplesmente um ato de volição. Mas depois da segunda vez as coisas haviam mudado de figura. O aroma dos cabelos, o gôsto da boca, a maciez da pele pareciam havê-lo penetrado, ou envolvê-lo. Ela se tornara uma necessidade física, algo que não apenas queria como sentia ter direito a gozar.”
– 1984, Orwell
Nesse caso, é IMPOSSÍVEL dizer que esse é o conteúdo central do livro, sendo o sexo entre os personagens somente um elemento que compõe a narrativa (carregada de ideias e críticas sociais).
Mas há também livros que dão mais espaço para conteúdos eróticos, e isso não é um problema!
A questão é que ter uma cena de sexo não significa escrever literatura erótica, assim como ter uma cena de violência física não significa que a obra é uma narrativa de guerra, por exemplo.
Mas quando ter uma cena hot é algo realmente positivo?
Quando ela não foge do resto da narrativa.
Um texto literário é uma unidade, todos os seus elementos precisam estar amarrados uns nos outros. Ou seja, deve ter sexo somente quando fizer sentido para o enredo e seus personagens; além disso, a forma como isso ocorre e como os personagens lidam com a situação tem que ser coerente.
Para ilustrar bem, se o casal em questão é uma dupla de adolescentes que estão por ter sua primeira experiência, não faz sentido que eles tenham um “sexo selvagem”, usando todas as posições do kama sutra habilmente. Isso não seria coerente.
Um exemplo positivo dessa circunstância é a forma como a série Sex Education desenvolve a sexualidade adolescente, ainda envergonhada e um tanto desajeitada.
Então você me diz: ok, eu estou escrevendo um livro e não sei se devo colocar uma cena do tipo nele. O que eu faço?
O principal é considerar o caminho das personagens. Considere suas experiências prévias, sua personalidade e possíveis traumas ou inseguranças e pense como isso pode influenciar as suas decisões e vivências sobre a sua sexualidade.
Como escritor, é importante não ter pudor. As cenas não precisam ser descritas nos absolutos detalhes… mas isso não significa fingir que não aconteceu ou dar um jeito de “fugir de escrever a cena”.
Um bom exemplo de cena que não entra nos pormenores é a primeira experiência de Kvothe, protagonista da série de livros O nome do vento. O autor optou por escrevê-la por meio de uma série de metáforas, deixando as coisas menos óbvias.
Mas então, quando uma cena hot é algo negativo?
- Quando tem falta de conexão com a narrativa.Como já dissemos antes, o momento íntimo tem que fazer sentido com o contexto. Se estivermos escrevendo sobre uma história de guerra, por exemplo, em que não haja tempo ou espaço suficientes, não faria sentido que, de repente, houvesse uma grande calmaria injustificada só para que o casal transe.
- Mal desenvolvimento dos personagens e de sua relação.
Mês passado, no post Escrevendo uma paixão: o amor na ficção, nós discutimos sobre o romance enquanto elemento narrativo, tratando da importância de um bom desenvolvimento. Mas, resumindo, pra ser uma boa cena, tem que ter química entre quem está se beijando e não tem como ter uma boa química sem o desenvolvimento dos personagens – individualmente e como dupla. - Retrato ultra idealizado
É bem comum que alguns autores, buscando escrever algo interessante, criem uma cena que acaba não correspondendo muito com a realidade.Um exemplo negativo disso é o capítulo 111 “WangXian, parte 1”, do livro Mo Dao Zu Shi, em que ocorre um sexo de mais de uma hora, sem lubrificação e sendo a primeira vez de um dos personagens.
“Lan Wangji não aguentou sua provocação. Com as estocadas, Wei Wuxian sentiu como se tudo dentro dele tivesse se mexido. Ele implorou gentilmente, mas Lan Wangji foi ainda mais forte. Tendo sido mantido por quase uma hora sem mudar de posição, as costas e as nádegas de Wei Wuxian estavam dormentes. Depois da dormência, vieram a dor e a coceira, quase como se milhões de formigas rastejassem dentro de sua medula óssea.”
- Violência banalizada (falta de consentimento).
Esse é um assunto delicado e que vai ser desenvolvido em maior profundidade ainda nesse post. Porém, vale adiantar que, muitas vezes, cenas de estupro ou violência sexual são fetichizadas, tratando da falta de consentimento como algo aceitável.Novamente, um exemplo disso é o capítulo 118 “Extra – Incense Burner, part 2”, de Mo Dao Zu Shi:
“Agora, apesar de ser muito mais preparado do que Lan Wangji, ele ainda era incapaz de resistir. Quando ele realmente não aguentou mais, ele só conseguiu se esquivar para o lado, torcendo a cintura no desejo de escapar, mas Lan Wangji o imobilizou. Com algumas estocadas mais profundas, ele não conseguia nem fazer mais som.(…) Por um tempo, Wei Wuxian cerrou os dentes e obedientemente suportou a foda.”
Em suma, o desenvolvimento do enredo e dos personagens deve caminhar para a presença ou a falta da intimidade física.
Se tivermos um casal adulto, que tem uma boa química e se apaixona ao correr de um livro — isto é, todo mundo já sabe o que quer, há consentimento e maturidade para que as coisas aconteçam de uma forma mais confortável —, por que não ter a cena hot?
A sensibilidade na escrita é crucial
Para pensar a forma como vamos retratar a intimidade física em seus diferentes níveis de intensidade e detalhe, devemos ter em mente:
- Faixa etária e público-alvo: para quem e sobre quem você escreve? Que tipo de cena seria apropriada para esse grupo?
- Não romantização e representação de estereótipos: é muito fácil cair em um “lugar-comum”, em que representamos não algo baseado na realidade, mas em um clichê. Sua cena hot é verossímil? Ela condiz com a realidade?
- Male gaze e objetificação feminina: um clichê muito frequente — e antiquado — é a “mulher passiva” que somente satisfaz as fantasias masculinas. O olhar narrativo pode sim ser masculino, mas cuidado para não deixar de construir mulheres humanas e subjetivas.
PARTE 2
A questão do casal
Precisamos deixar muito claro que não é todo casal que precisa transar. Isso acontecer, ou não, vai depender (1) do contexto e (2) do timing da história.
Como já discutimos, a coerência da obra é essencial, então, se não tivermos personagens maduros e que desejem intimidade sexual, que estejam em um ambiente e momento que as permita desenvolver isso por alguém, não faz sentido inserir na narrativa.
Mesmo que o casal já exista, como é o caso do conto Os frutos da minha mulher, da escritora coreana Han Kang, não é obrigatório que haja cena hot. No conto, por exemplo, o casal vive a deterioração de sua relação, de modo que não poderia haver uma cena linda e romântica de sexo neste contexto.
Também, não é porque o amor ou a atração exista que o sexo deva acontecer cedo.
Um exemplo disso é o Amor nos tempos do cólera, de Gabriel Garcia Marquez; nele, o romance é desenvolvido durante todo o livro, mas, por conta das circunstâncias, só ocorre intimidade física entre o casal nas últimas páginas do livro.
O que é ruim é quando as partes estão interessadas e há uma tensão gigante no ar, mas, sem motivo ou explicação, nada ocorre. Isso faz com que pareça que o autor fugiu de escrever a cena.
A questão do desconforto
Ninguém é obrigado a gostar de nada, claro, mas existe um grupo grande de leitores e escritores que se sentem, em alguma medida, constrangidos com a leitura de textos com cenas quentes.
Acredito que, enquanto fenômeno social e coletivo, devemos pensar o porquê disso. Infelizmente, não será possível nos aprofundarmos muito nesse tópico, mas ainda vamos elaborar algumas ideias e provocações sobre isso a seguir.
“A cena é muito pesada”
Essa é uma frase relativamente comum… Mas o que faz com que tenhamos essa percepção?
De fato, às vezes, a forma como a cena hot é escrita pode ser um pouco constrangedora (como quando a cena expressa o desconforto do autor em escrevê-las — por exemplo, quando, por vergonha de usar a palavra “penis”, decide usar algo como “salsicha”).
Por outro lado, cenas com falta de consentimento podem estar presentes no livro e ser algo extremamente problemático e sensível.
Nesse caso, a cena não é de conteúdo romântico ou erótico, mas é uma violência. E, sim, por vezes, essa violência é banalizada, sendo o ato sexual tratado como algo “normal”, mesmo sem o consentimento de uma das partes (como no exemplo que trouxemos acima). Isso é um problema.
Consentimento é algo essencial para uma relação sexual saudável e ética e a sua falta configura um crime:
“LEI Nº 8.072, DE 25 DE JULHO DE 1990.
Art. 1o São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, consumados ou tentados: (Redação dada pela Lei nº 8.930, de 1994) (Vide Lei nº 7.210, de 1984)
(…)
V – estupro (art. 213, caput e §§ 1o e 2o); (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)”
-Constituição brasileira.
Dessa forma, devemos ter muito cuidado ao escrever uma cena de sexo entre personagens; por vezes, dá-se atenção somente a fantasia de uma parte, colocando o outro lado como absolutamente submisso e sujeito às vontades do outro independentemente da sua própria.
Escrever isso não configura um crime, de forma alguma, mas colabora para manter uma mentalidade bem problemática em relação às praticas sexuais e colabora com a famigerada “cultura do estupro” — ou seja, normalizando a violência sexual.
Se você vai tratar de uma violência, dê a ela o peso correspondente na narrativa — caso você queira saber mais sobre isso, leia o post Sensibilidade e violência na escrita.
Nesse caso, sim, a cena é pesada mesmo. Mas isso ocorre por um problema de escrita da obra, que desconsidera o conteúdo sensível do tema em prol de uma configuração de mundo bastante problemática. Fique atento ao consentimento. Sempre.
Um retrato do prazer, especialmente o feminino
Agora, parece estranho que alguém possa dizer, ao ler um livro de fantasia por exemplo, que achou a cena hot (consentida e fruto de um desenvolvimento coerente) pesada… mas ela leu, sem maiores problemas, uma cena de assassinato.
Vivemos em um mundo em que a sexualidade pode ser um assunto tão tabu a ponto de acharmos mais “leve” ler cenas de agressão física ou de perda de um ente querido do que ler aquelas que retratam a troca de prazer consentida entre adultos.
É comum que alguns leitores ou escritores se sintam generalizadamente constrangidos com as cenas hot, o que parece acontecer especialmente dentre as leitoras mulheres. Isso acontece, em parte, porque a sexualidade ainda é algo que temos dificuldade de falar sobre.
Ou seja, não costumamos falar abertamente sobre isso e há um certo pudor social em relação ao tema — e isso é especialmente verdade quando falamos de literatura feita por e para mulheres.
Temas como a masturbação feminina ainda são mal recebidos; ainda hoje é mais comum que as personagens femininas sejam escritas em papéis mais passivos e que não buscam ativamente agir de acordo com a sua sexualidade. Por isso devemos valorizar, e muito, o trabalho das escritoras que vão contra essa corrente.
Apesar de estarmos no século XXI e termos feito imensos avanços nos direitos das mulheres, ainda existe algum estigma quanto a liberdade e o descobrimento da sexualidade feminina.
Em defesa da representação da sexualidade na literatura
A literatura, enquanto arte, é uma potência imaginativa; através dela podemos recriar e pensar o mundo à nossa volta. A imaginação nos permite sonhar e, ao ler, podemos sonhar o sonho de outra pessoa.
Claro, as histórias não tem de ser todas bonitinhas e utópicas, mas o fato é que, ao ler, nós olhamos para a nossa realidade com novos olhos; assim, podemos questionar aquilo que parece errado e cultivar o que é bom. Isso vale também para a sexualidade.
Ela é algo natural da vida humana; cada um se relaciona de forma única e individual com a sua sexualidade, tendo diferentes emoções, desejos e gostos. Censurar as cenas hot é limitar a literatura em sua potencialidade de criar possibilidades humanas.
Além disso, é através da possibilidade de conhecer as experiências do outro que podemos ter parâmetros para entender as nossas próprias experiências. Isso é extremamente importante, especialmente considerando a falta de diálogo que ainda existe quanto a isso.
Se não tivermos bons retratos do prazer, dificultamos que as pessoas saibam lidar com a sua realidade. Precisamos imaginar relacionamentos saudáveis e consentidos.
Isso não significa que todo livro tem que ter cena hot ou que todos tem que amar lê-las, mas devemos nos perguntar: por que não? Qual o motivo disso?
Recomendações de leituras com cenas hot
- Vermelho branco e sangue azul – Casey McQuiston
- Cidade da lua crescente – Sarah J. Maas
- Corte de Espinhos e Rosas – Sarah J. Maas
- Sua loucura – Lana Machado
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