Em 1977, no primeiro de fevereiro, Clarice Lispector foi entrevistada por Júlio Lerner, repórter da TV Cultura. Essa participação – no programa “Panorama” – foi o único registro audiovisual da autora em vida. Alternando trechos da entrevista e relatos de pessoa relacionadas a ela, esta gravação nos oferece uma visão generosa sobre quem é e o que pensa Clarice Lispector.
Clarice tinha, na gravação deste programa, 55 anos. Mais dez meses, viria a falecer, com 56. Portanto, sua fala, neste programa, é a fala de uma autora madura, que já havia publicado grandes clássicos da literatura brasileira, como “A Paixão Segundo G.H.” e “A Maçã no Escuro”.
O mais interessante nesta entrevista são, efetivamente, as falas de Clarice, que demonstram sua inteligência e sensibilidade. Como esta descrição, de si mesma, que ela nos dá: “eu sou tímida e ousada ao mesmo tempo”. Ou a melancólica e sóbria definição que Clarice dá ao ser maduro: “o adulto é triste e solitário. […] A qualquer momento da vida, basta um choque um pouco inesperado e isso (o adulto se tornar triste e solitário) acontece”.
Clarice responde, dentre outras, a questões sobre sua obra. Quanto à sua popularidade – até hoje, uma das autoras mais vendidas no Brasil e no mundo – ela diz: “Me chamam até de hermética, como eu posso ser popular?”. E, ainda sobre esse suposto “hermetismo”, ela diz: “Eu me compreendo, de modo que, pra mim, eu não sou hermética”.
De fato, para quem sente o que Clarice escreve – a quem o texto dela toca, como ela mesma diz -, não há “hermetismo”, nem nada do tipo, que nos afaste dela. Um exemplo disto (de como o “ser tocado por Clarice” é algo vital para a aceitação de sua obra) é o relato que ela narra, envolvendo um professor do prestigiado colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, e uma adolescente: “Por exemplo, o meu livro ‘A Paixão Segundo G.H.’, um professor de português, do Pedro II, veio lá em casa e disse que leu quatro vezes o livro e não sabe do que se trata. No dia seguinte, uma jovem, de dezessete anos, universitária, disse que este livro é o livro de cabeceira dela. Quer dizer, não dá pra entender! […] Ou toca, ou não toca. Quer dizer, suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato. Tanto que o professor de português, de literatura, que devia ser o mais apto a me entender, não me entendia. E a moça, de dezessete anos, lia e relia o livro. Parece que eu ganho na releitura, o que é um alívio”.
Em dado momento, respondendo ao questionamento sobre quais os seus trabalhos (“filhos”, no dizer do entrevistador) favoritos, Clarice fala sobre o conto “Mineirinho”: “Uma coisa que eu escrevi sobre um bandido, sobre um criminoso, chamado ‘Mineirinho’, que morreu com treze balas, quando uma só bastava, e que era devoto de São Jorge, e tinha uma namorada. O que me deu uma revolta enorme, e escrevi isso”.
Clarice segue, descrevendo o enfoque que deu à história, e busca dizer o que escreveu. Recuperamos, para este texto, o escrito de Clarice a que ela se refere: “Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro”.
Na entrevista, ela diz: “O décimo-terceiro sou eu. Eu me transformei no ‘Mineirinho’, massacrado pela polícia. Qualquer que tivesse sido o crime dele, uma bala bastava. O resto era vontade de matar. Era prepotência”.
Resoluta, Clarice afirma que o que ela escreve – por exemplo, o conto “Mineirinho” – não altera em nada a ordem das coisas. “Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em nada.” Ocorre, então, a célebre cena, várias vezes veiculada nas redes sociais: o entrevistador pergunta “então, por quê continuar escrevendo, Clarice?”, ao que ela responde: “e eu sei? (acende e traga um cigarro) Porque no fundo a gente não tá querendo alterar as coisas, a gente tá querendo desabrochar, de um modo ou de outro”.
Além do que foi dito neste texto, há muito mais nesta entrevista. Há falas de Olga Borelli, sua colega, que a acompanhou em seus últimos anos até o fim de sua vida. Há, também, uma entrevista com a cineasta Suzana Amaral, responsável por levar ao cinema a última novela de Clarice: a célebre “A Hora da Estrela”. E, ainda, mais falas da autora, abordando sua juventude, as críticas em torno de sua obra, seu processo criativo, sua rotina…
Em suma: além de rara e única, esta entrevista possui a maior qualidade de todas: é uma delícia de assistir.
O programa “Panorama com Clarice Lispector”, realizado pela TV Cultura, está disponível em seu respectivo canal no Youtube.